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1. No domingo, a coincidência algo macabra. Leio o comentário de alguém dizendo algo como “o país só vai melhorar depois que a esquerdalha for exterminada”. Quase vomito, mas contenho o nojo e me viro para minha mulher para falar algo a respeito desse ímpeto de acabar com tudo o que nos contraria. Ela escuta pacientemente minha digressão e, sem falar nada, me mostra o celular. É quando fico sabendo da morte do tesoureiro do PT durante sua própria festa de aniversário.
2. A princípio, as informações são poucas e confusas. O que não impede que a multidão chegue a conclusões apressadas e categoricíssimas. Um sem-número de políticos e celebridades de portes variados repudiaram imediatamente o crime, pondo a culpa no bode expiatório preferido deles, Jair Bolsonaro. Leio que o PT está sob ataque.
3. Não estou entendendo nada. Mesmo vivendo no caótico Brasil do século XXI, a ideia de alguém entrar aleatoriamente numa festa e atirar contra as pessoas só porque o tema da festa é Lula me parece fantástica demais. Tragicamente fantástica. Mas aí lembro que sou cronista e que preciso reagir rápido aos acontecimentos. E se for um crime comum do qual a esquerda está se apropriando? E se for mesmo um crime político? Quais as consequências disso? Socorro!
4. As dúvidas se acumulam. Será que o fato de Lula ter exaltado um militante que jogou um senhor contra o para-choque de um caminhão tem alguma coisa a ver com isso? Ou será que o bater de asas de uma borboleta na China é que provocou os disparos em Foz do Iguaçu? Será que o petecídio, isto é, o assassinato de um militante do PT, se tornará agravante em nosso Código Penal? Será? Será? Será?
5. Sempre que alguém morre por política, seja em grandes protestos, atentados ou discussões como essa de Foz do Iguaçu, fico imaginando como é o acerto de contas do falecido ao chegar ao Céu. E não, não estou de zombaria. Imagino mesmo como a pessoa explica à própria alma ou a São Pedro que deixou este mundo porque acreditava que o comunismo era superior ao capitalismo ou que o líder A era melhor do que o líder B. Deve ser no mínimo constrangedor.
6. Nesses casos, também imagino sempre quais teriam sido as últimas reflexões da pessoa. Embora muitos não tenham tempo para todas as reflexões que deixaram de fazer em vida.
7. O cinismo é uma desgraça à qual, infelizmente, não estou imune. Quando dou por mim, me pego escrevendo sobre a festa que teria motivado o assassinato. O aniversariante usando uma camiseta com a cara feia do Lula. O cartaz também com a foto de Lula e os dizeres “pro Brasil voltar a sorrir”. Lula na mesa. Uns docinhos em forma de coração vermelho. Não era minha intenção ridicularizar a vítima. Só não consigo entender como alguém pode chegar aos 50 anos idolatrando um político a esse ponto.
8. Meu editor tem mais juízo do que eu e me pede para guardar o texto na gaveta por 24 horas, relê-lo e só então decidir ou não pela publicação. Mas preciso de apenas mais uma releitura para perceber que ele tem razão (algo raro).
9. Tenho umas considerações a fazer sobre as manifestações de idolatria a Bolsonaro e sobre o comentário do “exterminador de esquerdistas” mencionado lá no primeiro item deste texto. Mas, só por hoje, não vou desenvolver essas ressalvas.
10. O velho e bom Fernando Pessoa falava da sensação agradável de não entender algumas coisas. Uma sensação típica da infância. Quem nunca ficou fascinado diante de uma máquina de algodão-doce pensando “como é possível?!”. Tal qual a criança que fui, procuro manter a ignorância em alguns assuntos. Para não perder o fascínio. Ah, infeliz é aquele que entende tudo – ou acha que entende. A vida é um mistério e o que leva pessoas a matarem ou morrerem por política é algo que está além da minha capacidade de compreensão. E, no que depender de mim, continuará assim.
11. Também não entendo como as nuvens carregadas pairam nos céus de tempestade. E não há explicação sobre correntes ascendentes capaz de me esclarecer esse fenômeno. Me deixa.
12. Por mais que os petistas me irritem e me ofendam e até façam ameaças veladas contra mim, e por mais que a esquerda tenha um tenebroso histórico de violência no varejo e no atacado, esses aspectos violentos da política ainda são como o algodão-doce e as nuvens que, pesadonas de chuva, desafiam a lógica da gravidade.
13. Tampouco entendo o que leva alguém a fazer uma festa de aniversário com tema político. Suponho, sem buscar quaisquer teorias para comprovar minha hipótese à toa, que tenha a ver com vazio espiritual e com a falência do imaginário de que tanto fala meu amigo Francisco Escorsim. Mas é uma realidade tão distante da minha que, sinceramente, prefiro continuar na minha saudável ignorância.
14. Como este texto ficou com 13 itens, o que talvez desse margem a interpretações esdrúxulas, criei mais este item que me permite desabafar: não gosto do número 14. Nunca gostei. Se você parar para pensar, o 14 é um desses números absolutamente inócuos, sem mensagens ocultas ou grandes simbolismos esotéricos. E, no entanto, é indispensável ali entre o 13 e o 15. Sem o 14, o mundo seria um caos maior do que é.