Terça-feira, dia 9 de junho, 19 horas. Ajeito o laptop no colo e sigo os links que me levam à primeira aula do curso “Entenda o Fascismo para ser Antifascista”, promovido pela União da Juventude Socialista, a Fundação Maurício Grabois e a Escola de Formação Política Castro Alves, todas ligadas ao PCdoB de Manuela D´Ávila, Jandira Feghali e Flávio Dino. São seis aulas ministradas por professores de instituições federais. É a atividade assalariada nas universidades que permite que eles deem este curso, recebendo ou não, para legitimar intelectualmente a ação dos violentos grupos antifa. Mal posso esperar.
A fim de me enturmar, solto um “Boa noite, camaradas” no chat. O clima ali é de união hostil contra aqueles que os alunos consideram fascistas – ou seja, todos que não concordam com eles. Os slogans gritados no chat vão desde o vazio “Todos pela democracia” até o ameaçador “Fogo nos fascistas!”.
Para a primeira aula, assistem ao vídeo introdutório da bela Manuela d´Ávila incríveis 6 mil pessoas (número que diminuiu bastante ao longo do curso). Aliás, quando o rosto de Manu aparece na tela, num close que ressalta seus melhores traços, a turma virtual irrompe numa explosão de coraçõezinhos e declarações de amor pela ex-deputada.
Mas agora silêncio que as aulinhas vão começar.
1ª aula: “Laboratórios ideológicos do imperialismo estadunidense”
A primeira aula é precedida pela fala de uma “mestre de cerimônias” muito empolgada, que já chega citando Marx e dizendo que o curso é extremamente necessário porque “não basta compreender a realidade, é preciso transformá-la”. Ela diz ainda que “ficar em casa [na pandemia] é ser contra Bolsonaro” e que o coronavírus “está matando pobres, negros e jovens”.
A tudo isso o professor João Quartim de Moraes ouve com certo enfado. Ele é um senhor de fala mansa, comunista-raiz, ex-dirigente do grupo guerrilheiro Vanguarda Popular Revolucionária. E sua aula, até pelo título, tem aquela aura de revolução intelectual de um tempo nem tão distante assim em que a esquerda se dedicava aos estudos.
Como a aula se intitula “Ovo da serpente: origens teóricas e históricas do fascismo”, o professor acha por bem fazer toda uma semiótica do ovo. Ao citar regimes autoritários, ele menciona o nazismo, as monarquias e os liberais (!). Mas não fala nada de Stalin, Mao, Pol Pot ou de um Hoxha. Diante da omissão, alguém no chat pergunta se o stalinismo pode ser considerado fascista. A resposta dos outros alunos é “tem gado na área”.
Durante uma hora e quarenta minutos, João Quartim de Moraes expõe toda a história do fascismo italiano com uma riqueza de detalhes impressionante. Nomes e datas e pormenores vão se somando numa tentativa clara de encontrar semelhanças entre a Itália dos anos 1920 e o Brasil de 2020. Em certo momento, o professor faz um elogio contido ao que Mussolini realizou “de bom” – isto é, todas as leis trabalhistas que serviriam de inspiração para a nossa CLT. Mas ele é inteligente, percebe a gafe e logo se retrata.
Num momento de lucidez que causou alguma revolta aos raros alunos que estavam prestando atenção à aula (a maioria estava preocupada com o certificado do curso), João Quartim de Moraes reconheceu que o presidente Jair Bolsonaro “pode até ter mentalidade fascista, mas não é fascista, senão [este] curso não estaria sendo realizado”.
Mas logo depois a lucidez dá lugar a algumas falas cheias de teias de aranha. “O fascismo é a ditadura terrorista do capital financeiro”, diz ele, para logo em seguida emendar com uma teoria da conspiração segundo a qual o então presidente da França Nicolas Sarcozy matou o ditador líbio Muamar Kadafi “para se livrar de dívidas”.
Até que o professor se vê numa encruzilhada. Ao descrever o fascismo italiano desde os seus primórdios, ficam claras as muitas semelhanças entre a Itália de Mussolini e a União Soviética de Stalin. Encurralado pela própria incoerência, ele então se sai com uma análise etimológica da palavra “totalitarismo” que, para João Quartim de Moraes, não se aplica ao regime soviético porque foi “inventada nos laboratórios ideológicos do imperialismo estadunidense”. Sendo mais específico, por Hannah Arendt, que ele chama de “cientista política do dólar”.
2ª aula: Mas e o certificado?
Dia novo, aula nova. Mas os clichês são os mesmos. A simpática Márcia Carneiro, professora no departamento de história da UFF, vai falar sobre “O integralismo de ontem e hoje”. A ideia dos organizadores foi certamente a de associar Jair Bolsonaro a Plínio Salgado, líder do integralismo, visto por muitos como uma espécie de fascismo tupiniquim. Mas algo dá errado.
Porque Márcia Carneiro é uma apaixonada pelo assunto. Ela conta que estudou história justamente porque a avó era integralista. Seus olhos brilham de entusiasmo – não só pela história familiar, mas também pelos próprios ideais integralistas que ela deveria estar rejeitando. O carinho com que a professora trata o assunto não passa despercebido pelos alunos que, no chat, começam a reclamar da falta de críticas mais enfáticas ao integralismo.
Neste dia a aula começa com 4 mil alunos. Muitos dos quais não estão ali para aprender, mas para ensinar a professora. Quando Márcia Carneiro diz, por exemplo, que o integralismo não era racista, os alunos se revoltam. Começam a reclamar da didática. Que a professora fala rápido demais. Essas coisas.
A professora fala, fala, fala. E qualquer semelhança com os dias atuais vai ficando cada vez mais distante. Até que ela é obrigada a recorrer, novamente, às intenções. “O bolsonarismo seria um integralismo piorado”, diz ela, sem explicar o motivo, mas finalmente arrancando aplausos dos alunos – que, aliás, não param de perguntar do certificado.
Por fim, a única associação que Márcia Carneiro consegue fazer entre o integralismo e os dias de hoje é subjetiva. “A extrema-direita já teve intelectuais muito bons. Não eram como os de hoje”, diz ela, se rasgando em elogios a Miguel Reale – pai de um dos autores do impeachment contra Dilma Rousseff.
Para os alunos, isso é um absurdo. Além de exaltar a inteligência de um intelectual “fascista”, a professora não lhes dá nada que justifique o desejo revolucionário, violento e antidemocrático antifa.
3ª aula: Problemas técnicos
A terceira aula, intitulada “Fascismo e neofascismo no século XXI”, seria ministrada por Fábio Palácio, doutor em Ciência da Comunicação pela ECA/USP, Professor de Jornalismo da UFMA e diretor da Fundação Maurício Grabois. Seria, porque problemas técnicos impediram que o saber do professor transbordasse pela YouTubesfera.
Palácio tenta falar, mas áudio e vídeo falham. A única coisa que deu para escutar é que Trump é representante do neofascismo. A “mestre de cerimônias”, toda constrangida, pede desculpas. O intérprete de libras fica de mãos abanando. A transmissão é interrompida e sou obrigado a ver vídeos que falam da União da Juventude Socialista. No chat, os alunos dão dicas para resolver o problema. “Tira o computador da tomada e liga novamente”, diz um. “Tira o fone de ouvido”, sugere outro.
Depois de meia hora de tentativas e fracassos, chega-se a um impasse. A aula será ou não remarcada? Vamos tentar mais uma vez. E outra. E outra. Sem querer, a aula se torna uma alegoria do próprio comunismo, a “experiência que nunca foi posta em prática de verdade”.
4ª aula: “Não se pode ser branco sem ser racista”
A quarta-aula, ministrada em plena noite do Dia dos Namorados, é a mais belicosa de todas. Intitulada “Lições de antiracismo para ser antifascista”, ela é dada por Gabriel Nascimento, da Universidade Federal do Sul da Bahia, para quem “a luta política de hoje é mais difícil” do que no tempo do fascismo.
Para Nascimento, que cita nomes a torto e a direito, sempre enfatizando a raça das pessoas, “brancos não são todos racistas, mas estão num país racista, então são racistas dentro da racialidade”. Entenderam? Nem eu. Incrível perceber como o jargão acadêmico vazio molda o raciocínio dessa intelectualidade que, sem jamais arriscar nada, estimula as pessoas a saírem às ruas e lutarem pelos valores que eles, intelectuais, defendem.
Os 2 mil alunos que assistem à aula comigo ouvem coisas como “a universidade é um espaço brancocêntrico”, “o capitalismo é o gerador do fascismo”, “a democracia burguesa é a mentira do capitalismo”, “o racismo tem origem na Idade Média”, “não há racismo sem capitalismo e não há capitalismo sem racismo” e “miscigenação é eugenia”.
A tudo isso os alunos ouvem expressando concordância entusiasmada. Alguém no chat fala em Thomas Sowell, mas Gabriel Nascimento ignora. Ele prefere dizer que a escravidão no Brasil não acabou por causa da luta dos abolicionistas (“aliados brancos”, no linguajar dele), e sim por causa das insurgências dos escravos. Ou ainda que o humanismo é uma coisa horrível, porque o conceito nasceu na Idade Média, quando os europeus passaram a se considerar “mais humanos do que os outros”. Oi?
A aula termina com o professor dizendo que é impossível ser branco sem ser racista e lendo o poema “Não Vou Mais Lavar os Pratos”, de Cristiane Sobral. O poema fala de uma mulher, talvez uma empregada doméstica, que descobre os livros e, por isso, não vai mais se humilhar lavando os pratos sujos da casa. O que revela bastante dessa esquerda identitária que se afastou dos trabalhadores porque considera o trabalho físico algo indigno.
5ª aula: Populismo judicial
Esther Solano, que ministra a aula “Bolsonarismo e neofascismo”, é socióloga e professora da Unifesp. Mais importante do que isso: ela não ri. Em nenhum momento de sua exposição ela demonstra qualquer tipo de leveza. Compreende-se: para ela, a luta política é séria. É a própria tradução da vida, como ela dará a entender mais tarde.
Na segunda semana do curso, a audiência caiu bastante. Não mais do que 1,7 mil pessoas começam assistindo à aula da professora especializada em antibolsonarismo, para quem o fascismo de hoje é um “fenômeno psicossocial” que se traduz na “política movida pelo ódio e pela aniquilação”.
Os que toleram a aula ouvem que a direita, ou melhor, a extrema-direita é aquela que “não suporta a existência do diferente”. Diante do que eu só consigo pensar nos gulags, na Revolução Cultural chinesa, na Stasi, nos pelotões de fuzilamento da Revolução Cubana – em todas essas pungentes demonstrações de tolerância à diversidade de pensamento que a esquerda nos deu ao longo do século XX.
Para Solano, “todos os apoiadores de Bolsonaro são fascistas, burros ou movidos pelo ódio”. Quais os sinais disso? É evidente. Bolsonaro é “neoconservador e neoliberal” e faz um governo marcado pelo “pauloguedismo”, cuja maior característica é a “retirada de direitos dos trabalhadores”. Mais: Jair Bolsonaro e os “fascistas” só chegaram ao poder depois de uma luta contra a corrupção marcada pelo “populismo judicial”.
O ponto mais interessante da aula foi quando ela, sem demonstrar constrangimento, disse que a “política é maior do que o privado, a família e a igreja”. O problema de Bolsonaro e de seus apoiadores, portanto, estaria no fato de ele querer mudar isso. Ou, nas palavras dela, “promover a ‘privatização da vida’, considerada pelos protofascistas como a solução”.
Diante do que sou obrigado a evocar o célebre lema de Mussolini: “Tudo no Estado, nada contra o Estado e nada fora do Estado”. Será que a professora não percebe? Tento chamar a atenção dela no chat. Nada. Mando pergunta por e-mail. Nada. E, enquanto espero por uma resposta, ainda sou obrigado a ouvir que “o isolamento [por causa da pandemia] é direito, não privilégio”.
Esther Solano ao menos teve coragem de dizer que a esquerda precisa fazer uma autocrítica urgente e se afastar das pautas identitárias. Segundo ela, a aproximação da esquerda com essas questões alheias à luta de classes foi “usada para fortalecer a direita”.
6ª aula: “Elementos de fascistização”
Chego, enfim, à última aula. À proverbial cereja do bolo. Ao ler a ementa da aula “Lições de fascismo e antifascismo”, que pretende apontar “quais lições podemos tirar das experiências de resistência do passado”, imagino estratégias de guerrilha urbana, de propaganda, como montar barricadas sem a ajuda dos pais, essas coisas.
Mas infelizmente sou brindado com um tedioso monólogo lido pelo professor italiano Gianni Fresu, professor de Filosofia Política na Universidade Federal de Uberlândia e (atenção!) membro fundador e Presidente da International Gramsci Society Brasil.
Foi como entrar numa máquina do tempo e voltar para a oitava série, quando ouvia o saudoso professor Valdir falar em colonialismo e imperialismo – conceitos para lá de anacrônicos, mas que, para Fresu, continuam motivando o fascismo por aí.
Ele praticamente repete a aula de João Quartim de Moraes, acrescentando apenas o sotaque que lhe dá um quê de “lugar de fala”. Lá pelas tantas, minha atenção é recompensada pela confissão involuntária de que o “fascismo passou por uma fase esquerdista nacionalista”. Aguço os ouvidos, na esperança de que finalmente ouvirei um professor falar das incríveis e explícitas semelhanças entre o fascismo e o comunismo. Mas não foi dessa vez.
Ecoando novamente a primeira aula, Fresu diz que “Bolsonaro não é fascista, mas tem elementos de fascistização”. Ou seja, tudo aquilo contra o que os antifas lutam existe, se existe, no mundo das intenções, das aparências, da realidade acadêmica que, como sabemos, é uma fantasia à parte.
Velhos clichês
E assim termina o curso “Entenda o Fascismo para ser Antifascista”, promovido pela União da Juventude Socialista. A principal lição que aprendi foi a de que os velhos clichês esquerdistas que faziam a cabeça da juventude quando a minissaia era um escândalo e antes da queda do Muro de Berlim continuam por aí, recitados desavergonhadamente por intelectuais que acreditam que o papel do Estado é o de regular as relações humanas. Exatamente como o fascismo.
Como bônus, aprendi ainda que, na condição de homem branco, sou inerentemente racista e, por consequência, fascista. E que o capitalismo, que tirou milhões de pessoas da pobreza ao longo do século XX, é uma invenção dessa gente má que insiste em defender o direito à vida privada.
Ah, sim, e que Jair Bolsonaro não é fascista nem vivemos num regime fascista. Mas ele anda e fala e provavelmente pensa como fascista. Por isso todos os que estão ocupados em trabalhar e ganhar a vida honestamente e não saem às ruas para lutar contra o fascismo são, na verdade, fascistas.
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