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O leitor que se aventurar pelas linhas e parágrafos abaixo nem desconfia do quão trabalhoso foi escrever este texto. Comecei, parei, trabalhei em outras coisas, retomei, apaguei, recomecei, apaguei, recomecei, apaguei. Tudo porque não quero que este texto soe como um convite ao conflito, embora eu tenha certeza de que muita gente o lerá assim já pelo título. Tampouco quero soar condescendente, como se abordasse o leitor de cima para baixo.
Minha ideia, aqui, é tentar entender por que, nos últimos dias, tanta gente boa e bem-intencionada, uma gente defensora da liberdade e dos valores cristãos, tem repetido alguns argumentos para lá de questionáveis para justificar uma defesa de Vladimir Putin e sua sanguinolenta incursão pela Ucrânia.
Dessas pessoas ouvi que se trata de uma guerra contra o globalismo – e que, se me coloco a favor do país agredido, é óbvio que estou escrevendo a soldo de George Soros. Outras me falam da importância de se assegurar a soberania da Amazônia. Sim, da Amazônia! Soberania que, ironicamente, seria respeitada apenas por Putin – o mesmo Putin que não reconhece a soberania ucraniana de entrar para a OTAN. Por fim, há o discurso mais exaltado do “cruzado” que acredita que Putin vai destruir o Ocidente para reconstruí-lo sobre uma pilha de escombros “conservadores”.
Fiquei a princípio pasmo. Depois, cedi à raiva e se instaurou em mim a guerra. Aos poucos, porém, as bombas termobáricas da minha indignação deixaram de explodir, dando lugar à busca pela compreensão. O que de forma alguma significa concordância. Falo da compreensão de alguém que muitas vezes também compartilha dessa sensação de impotência e de orfandade intelectual e espiritual que marcam nosso tempo. De alguém que vê com melancólica naturalidade o fato de muitos procurarem desesperadamente algum tipo de concordância subserviente com líderes políticos, artistas e até influenciadores de redes sociais.
Sujeição ao intelecto
Essa concordância subserviente à vontade alheia é, para muitos, um consolo. Um sinal de que elas não estão sozinhas neste mundo confuso e hostil. E é preciso compreender que uma pessoa que viva nessa solidão cheia de nuances políticas, intelectuais, emocionais e espirituais usará de todos os contorcionismos que ela considerar necessários para não se ver novamente sozinha ou, pior ainda, no grupo errado. É isso o que explica que pessoas boas e bem-intencionadas abandonem com tamanha facilidade a Lei Natural ou o prosaico bom senso para seguir qualquer um que soe remotamente (e hereticamente, devo acrescentar) como um salvador.
Em “Cristianismo Puro e Simples”, C. S. Lewis fala sobre esse pecado que é procurar no labirinto do intelecto explicações racionais (e quase sempre muito plausíveis) para um pecado anterior. Naturalmente, qualquer um que veja as cenas da guerra entre Rússia e Ucrânia sabe que o conflito é moralmente errado e que, por mais que as bases do entrevero possam ser milenares, estamos diante de um país agressor e um país agredido. O bom senso grita para que recorramos aos valores da tão difamada civilização judaico-cristã para escolhermos um lado. Se, porém, por algum motivo somos levados a contrariarmos o bom senso e todos os valores gravados na nossa alma, logo inventamos as maiores e mais criativas desculpas para justificarmos nossa submissão a outra coisa que não a Lei Natural.
Daí porque se evocam as narrativas de soberania da Amazônia, “restauração dos valores Ocidentais”, antiamericanismo e “expansionismo da OTAN” para justificar a submissão. Que tem uma lógica própria, reconheço. Uma lógica íntima e muitas vezes inacessível.
Essa lógica, aliás, foi explorada por Jordan Peterson. Acho que aqui ninguém diz que o psicólogo canadense está na folha de pagamento de George Soros, não é? Pois ele fala justamente da necessidade de abandonarmos os truques diabólicos e maquiavélicos do intelecto e de nos agarrarmos a algo de difícil definição: talvez seja instinto, talvez seja bom senso, talvez seja até fé. Seja lá o que for, é algo que não comporta argumentos perversamente criativos e teorias da conspiração. Por sinal, Jordan Peterson aponta bem que é essa sujeição ao intelecto o que explica o ambiente moralmente corrompido das universidades, onde o bom senso há tempos foi substituído por lealdades ideológicas ou citações e slogans da moda.
A verdade e algo mais
E veja só que coisa legal. Estava com dificuldades para desenvolver este texto, pelos motivos que expus lá em cima, no primeiro parágrafo. Me lembrei de C. S. Lewis e do pecado que é encontrar justificativas para o pecado. Me lembrei de Jordan Peterson e do intelecto que tende a escravizar nosso espírito. Me lembrei de Maquiavel e da inaceitável soberba que é agir amoralmente, de acordo com as consequências previstas. E ia deixar assim o texto no ar, talvez sugerindo que os leitores procurassem o bom senso naquele lugar misterioso onde reside a alma (“Como assim não encontrou? Se eu for aí e achar vou esfregar na sua cara!”).
Mas aí, numa das muitas pausas ao longo do dia, fui fazer um passeio por minhas lembranças numa rede social e me deparei com um trecho de Simone Weil que vem a calhar. Weil era uma inimiga do “pensamento político de grupo” porque via nele sempre uma relação de senhor e escravo. Mais do que isso, ela via no pensamento político de grupo uma deformação da busca pela verdade. Sim, aquela mesmo que, em a conhecendo, nos libertará, segundo um versículo muito citado pelo presidente. “A Verdade são pensamentos que se apoderam da mente do ser pensante cujo único desejo é do de alcançar a Verdade”, escreve ela.
Para Weil, contudo, quem deseja a “verdade e algo mais”, como a aceitação nas redes sociais ou a conformidade a determinada orientação ideológica, encontrará apenas a “mentira e o erro”.
E é assim, partindo do pressuposto de que estamos todos na busca por essa Verdade e lembrando que nunca, jamais, em hipótese alguma (nem depois de três ou quatro caipirinhas!) subestimo quem me lê, que encerro este texto. Mas não sem antes reiterar que não recebo nada de George Soros, não sou comunista e nem tenho meus adversários como inimigos. Agora, sim. Chegamos ao enganoso ponto final. (Porque, no que depender de mim, a conversa continua).