“O homem é mau e reina na maldade”. Essa é a conclusão do estranho Soneto 121, de William Shakespeare. Eu tinha uns 12 anos quando me deparei com a frase numa Reader’s Digest qualquer. Na época, não sabia nem o que era soneto nem maldade. Mas desde então a frase me assombra e enoja como uma barata existencial que preciso esmagar todas as manhãs para sobreviver.
O curioso é que, na tradução de Vasco Graça Moura, o verso, aqui e ali usado como prova de que Shakespeare não era muito afeito aos seus semelhantes ou de que o ser humano é incorrigível em sua perversidade, tem um sentido totalmente diferente. Ele encerra o poema dando a entender que é a retidão que triunfa sobre a maldade, restrita aos “oblíquos” que buscam, mas nunca alcançam, a primazia do mal.
Eu recto, eles oblíquos, nem podiam
seus pensamentos vis medir-me os actos,
a menos que esse mal fique de vez
e, todos maus, governe a malvadez.
Traduções à parte, o fato é que me lembrei do sombrio diagnóstico shakespeariano ontem, ao assistir à sessão da CPI (Circo Parlamentar da Ignomínia) da Covid que interrogou a médica Nise Yamagushi. Ao longo de toda a sessão de tortura, as palavras de Shakespeare me vinham como uma espécie de saco de risadas acionado sempre que os senadores Renan Calheiros e Omar Aziz se manifestavam.
Às 13 horas, quando outros compromissos me impediram de acompanhar o espetáculo funesto da nossa Câmara Alta, o estrago já estava feito. Eu estava semiconvencido de que, sim, o homem é mau e reina na maldade. E a maior prova disso é o senador alagoano e sua verve cínica, marcada pelo escárnio e pelo desprezo a tudo o que remotamente se assemelha à virtude.
Será que havia por aí outras pessoas na mesma condição? Pessoas que, no cotidiano, abrem sorrisos sinceros e distribuem abraços fáceis e procuram na palavra alheia sempre algo de bom, mas que, por causa de gente como o senador Renan Calheiros, hoje vislumbraram a ruína desse castelo panglossiano?
Imagine o bafo na alma!
Por mais que eu seja xingado de ingênuo, realmente acredito que é impossível para um corrupto (e, aqui, uso a palavra em seu sentido mais amplo, isto é, o de uma pessoa que se deixou afogar num pântano de más intenções) ser genuinamente feliz. Esse é o truque para compreender a maldade: ela tem em si um componente de sadismo que impede que o homem mau sinta o prazer que tanto busca no sofrimento alheio. O castigo do homem corrompido é a insatisfação eterna.
“Mas por que Deus deu a esses abutres a capacidade de planar e ver a beleza do mundo do alto?”, perguntei para o apartamento vazio, pensando justamente na aparente vida fácil de um senador que parece ter como único propósito de vida atazanar os outros. Ao ouvir minha voz, a Catota veio me estudar com seu olhar de felino julgador e seu ronronar generoso. Com a gata devidamente encolhida no meu colo, lembrei-me da resposta para a pergunta retórica: “Abutres se alimentam do que é podre. Imagine o bafo na alma!”. Foi assim que vi restabelecida, ainda que parcialmente, minha esperança.
Minha opção por rejeitar a conclusão fatídica de Shakespeare é racional e, portanto, intencional. Demanda certo esforço da razão e do espírito. Tenho cá nas minhas costas cicatrizes o bastante que me provam que, exageros poéticos à parte, o ser humano é, sim, mau e reina na maldade. Mas em algum momento dos últimos anos decidi ignorar o latejar insistente dessas feridas para me ater aos pequenos atos de bondade que fazem o meu dia.
Para me ater ao nascer do sol que registro diariamente como se fosse novidade. Ao ronrom da Catota. À risada do meu filho. Ao olhar apaixonado da minha mulher. À conversa matutina diária que tenho com meu amigo Cidão. À gargalhada de algum mendigo feliz por ter recebido um pão amanhecido de um benfeitor qualquer. E isso é algo que nenhum Shakespeare ou Calheiros vai me tirar.
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