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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Socorro! Um livro!

O que você deve fazer ao se deparar com livros racistas, misóginos, gordofóbicos, etc.

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Especialistas em estresse pós-traumático literário ensinam como agir ao se deparar com clássicos considerados "racistas" pela sensibilidade contemporânea. (Foto: Pixabay)

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A história é esta: um influencer supostamente se aventurou pelas trevas da obsessão que é aquele monumento da literatura chamado “Moby Dick”. Sim, o muito citado e pouco lido clássico de Herman Melville. Ao se deparar com passagens racistas, contudo, ele não aguentou e correu. Para onde? Para as redes sociais. Existe lugar melhor para afetar virtude e tomar aquela dose de aceitação tão cara ao viciado?

“Queria perguntar uma coisa para quem entende verdadeiramente de literatura”, começa ele no tuíte a que tive acesso por meio de um amigo que, desconfio, não gosta muito de mim. “Vi parágrafos profundamente racistas em ‘Moby Dick’”, continua. Uau, parágrafos! E aqui a gente já percebe um probleminha. Ver não é o mesmo que ler. Tenho cá para mim que quem vê um livro está interessado apenas em ser visto com o livro. Mas talvez a experiência tenha me tornado cruel demais.

Adiante, o influencer diz que continuou “a leitura do livro de nariz torcido”. Olha só. Sabia que livro tinha orelha, mas... nariz? Deve ser uma dessas edições pop-up. “Estou realmente incomodado”, desabafa ele em seguida. O “desabafa” é interpretação minha. Imagino o menino trintão fazendo biquinho. Sinceramente triste. Ou melhor, tisti. E correndo exibir todo o seu ímpeto antirracista para a multidão.

Por fim, o Felipe Que Não É Sênior, Filho, Jr. Ou Sobrinho apela ao conhecido e reconhecido bom senso das redes sociais para perguntar aos fãs que por ventura “entendam verdadeiramente de literatura" e estejam distraídos: “o que é recomendado em casos assim?”.

Não se desespere!

Confesso que nunca fiquei incomodado diante de “livros racistas”. Semana passada reli "Angústia", de Graciliano Ramos. Nada. No sábado, reli "O Beijo no Asfalto", de Nelson Rodrigues. Sem nariz torcido algum. Tampouco me desesperei a ponto de sair por aí perguntando o que devo fazer com esses e outros livros. Diálogos ou descrições racistas (ou sexistas, misóginos, homofóbicos, etaristas, gordofóbicos, etc.) nunca me fizeram cócegas. Nem jamais despertaram qualquer perversidade que eu tivesse escondida num armário. Mas é que sou razoavelmente normal. Acho.

Por isso tive de entrevistar especialistas em estresse pós-traumático literário (LPTS). “Incinere o livro imediatamente”, me ensinou uma moça que mora aqui no apartamento ao lado e que, pelos cabelos azuis, deduzi preconceituosamente que fosse woke. Era. Fazendo as vezes de advogado do diabo, perguntei se a queima do livro não contribuiria para as mudanças climáticas. Em dúvida, ela me passou o telefone da professora que a orientava na confecção de uma tese sobre sei-lá-o-quê (não prestei atenção). E voltou para o conforto do seu Harry Potter.

Continuei minha busca por respostas para este importante texto de interesse público. Depois de muita insistência, fui recebido na casa de uma simpática professora cega que recomendou enfaticamente que se queimasse o livro (“a Mãe Gaia entenderá”). Depois, ainda falando para as paredes, ela disse que as cinzas deveriam ser enterradas e o terreno, salgado com sal rosa do Himalaia.

Já estava satisfeito e ia me despedindo quando a professora pareceu ter se lembrado de algo.  “Esta parte é muito importante”, disse, e eu agucei os ouvidos. “Passe álcool nos olhos e, depois, seque-se ao sol do meio-dia”, sugeriu ela, brandindo ameaçadoramente a bengala. Fiquei com medo, mas não muito. Já estava no elevador quando a vi se aproximar, o tec tec tec um tanto quanto irritante indicando o caminho.

“Só mais uma coisa”, anunciou ela. Fiz uma pausa como se tirasse um bloquinho do bolso, mas decidi anotar mentalmente. “Pode falar”, disse, depois de fingir estar procurando a caneta num dos bolsos. “Diga para o seu amigo fumegar bem a casa com arruda, guiné, alecrim, boldo (boldo sempre é bom) e catinga-de-mulata”, sugeriu ela. Arregalei os olhos, mas ela não viu. Ah, essa botânica racista... “E, sobretudo, não se desespere!”, arrematou.

Resposta sincera

A resposta sincera à pergunta do influencer é algo como: continue lendo. Leia mais. Leia melhor. Leia sem neuroses contemporâneas. No caso específico de "Moby Dick", imagine-se num baleeiro comandando por um homem obcecado. Sinta ao mesmo tempo a liberdade do mar e a prisão da embarcação. A prisão da nossa consciência. Das nossas certezas. Do nossos desejos.

Leia as partes mais incômodas à hiper-sensibilidade atual e volte no tempo, a fim de aprender com erros pelos quais você não tem culpa. Admire todas as mudanças pelas quais passamos desde que o livro foi escrito. Contemple o homem escravizado por uma causa! Vislumbre uma das expressões da idolatria. Enfim, leia e entenda a distância que separa a genialidade de Melville da mediocridade que é reduzir clássicos da literatura a “livros racistas”.

Baseado neste tuíte do amigo Alexandre Soares Silva.

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