O futuro aqui retratado é sombrio porque a realidade observável também é sombria. Convém avisar aos leitores mais sensíveis a esse tipo de pessimismo que, entre o presente reportado e o futuro imaginado, houve incontáveis momentos de esperança que, por motivos que a crônica não comporta explicar, não se concretizaram. O futuro aqui retratado, pois, não é resultado apenas dos acontecimentos específicos que mencionarei ao longo do texto; ele é resultado de muitos outros acontecimentos, uns previsíveis e outros surpreendentes, para os quais a maioria achou melhor, na época, dar de ombros.
Estou falando do futuro no qual dois homens conversam sobre o que os levou até ali. Mas pouparei os leitores de descrições mais detalhadas para que eles não confundam o futuro imaginado, mas plausível, com mais uma distopiazinha vulgar dessas que abundam por aí. Direi, porém, que um dos personagens está reduzido a um amontoado de ossos e memórias confusas que ele compartilha com seu companheiro de cela.
Sim, de cela. Porque os dois estão presos. Como e quando essas prisões aconteceram é difícil dizer. Faz tanto tempo! De uma coisa, porém, pode ter certeza o leitor que chegou até aqui e que pretende continuar lendo esta crônica que não quer fazer rir nem flutuar os espíritos muitos pesados (não hoje): não houve “devido processo legal” nem qualquer possibilidade de defesa ou absolvição.
Neste inferno, os condenados não têm nome, dignidade ou esperança, mas têm memória. E é disso que trata este texto que começou obtuso e assim vai continuar, talvez seja o tempo chuvoso ou o almoço que não me caiu muito bem. Nas memórias de um deles, que vou apelidar de Pavlovich, tudo começou quando ele ligou a televisão e... É melhor deixar que ele próprio conte a história. Afinal, este é o único prazer que lhe resta.
“Lembra quando entrevistaram o stalinista na televisão? Chamaram de professor. De intelectual. De grande influência. Eu avisei...”, começou Pavlovich, pedindo para o narrador continuar porque lhe falta fôlego. Ofereço a ele um copo d´água, me sentindo carcereiro de mim mesmo, e continuo falando assim por algo daquele evento que todo mundo achou simples e banal, mas que, sabemos no futuro que descrevo, prenunciava os muitos amontoados de ossos encolhidos entre a própria imundície nas muitas celas dos muitos campos de reeducação.
É hora de o outro preso, o interlocutor silencioso e sem nome que muito bem pode ser você, sim, você mesmo que está me lendo agora e se perguntando “será que ele está falando comigo mesmo?”, entrar na história. O outro preso fecha os olhos como se morresse ou refletisse – nunca se sabe – e finalmente balbucia um “sim”. Ele não acrescenta mais detalhes, nem precisa. Basta olhar ao redor para ver as consequências muito palpáveis de ideias assassinas tratadas com naturalidade e ecoadas em milhões de cabeças vazias como um sinal de “pluralidade”.
Não por coincidência, no dia seguinte teve um vereador do PT que invadiu uma igreja durante uma Missa. “Lembra?! Lembra?!”, pergunta e insiste um agitado Pavlovich, a fim de que o interlocutor silencioso (sim, você mesmo!) entenda a gravidade do fato. Mais uma vez assumo a narrativa para contar que o vereador é militante “antirracista” e achou por bem invadir uma igreja para defender que um crime bárbaro – a morte de um migrante congolês no Rio de Janeiro - fosse vingado.
De repente o interlocutor silencioso arregala uns olhões e pergunta para Pavlovitch aonde ele quer chegar com essa história. O que uma coisa tem a ver com outra? E o que essas memórias esparsas têm a ver com esse medo de que a história se repita não como farsa, e sim como uma tragédia ainda mais sanguinolenta do a dos gulags?
O homem reduzido a um amontoado de ossos e algumas boas lembranças do tempo em que os homens ocos eram apenas uma imagem pessimista num poema de T. S. Eliot suplica que eu me manifeste. Que eu diga que nada daquilo vai acontecer. Que é só o tempo, o almoço, a segunda-feira. Que o stalinista vai cair no esquecimento e o vereador do PT perceberá o tamanho do seu erro antes mesmo de ver surgirem os primeiros cabelos brancos. Mas não posso dizer isso. Não posso mentir.
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