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O que falta ao Supremo Tribunal Federal é um amigo. Um amigo de verdade. Não esses amigos relapsos e desleais de hoje em dia, que não retornam as ligações, que cortam relações por causa de política ou (pior!) que passam a mão na sua cabeça por mais besteira que você faça. Digo amigo-amigo, desses que só querem nosso melhor e que não hesitam em, às vezes, nos puxar para um canto e dar uma bronca daquelas bem dadas.
(Neste caso, pelo bem e o amor da Democracia).
Um amigo que o convide a ignorar o isolamento social (com responsabilidade, sim, mas também com aquela sensaçãozinha boa de estar cometendo um pecadilho) e não se importe de atravessar a cidade para tomar um chope bem gelado comendo gordurosas batatas-fritas. Um amigo que comece perguntando da família, depois faça uns comentários jocosos sobre futebol, conte umas vantagens românticas e, por fim, aponte para o elefante ali, no meio do bar, perto da mesa de sinuca.
— Pô, STF. Tava aqui pensando. Aquele negócio que você fez lá não foi muito legal, né? Sei que a Dita é sedutora, tem uns pernões e tal. Mas a Democracia tá chateada.
O STF talvez fingisse surpresa pelo comentário súbito do amigo. E é possível que por sua cabecinha semicalva, semigrisalha, semipintada de acaju passe a pergunta “Do que é que você está falando?!” Mas, como para amigo-amigo não se mente, ele engole o “Você sabe com quem está falando?!” e não diz nada. Bebe um gole do chope gelado, limpa o bigode, se ajeita na cadeira.
— Data venia, mas...
— Nah. Pode parar com suas vênias. Sou teu amigo, cara. A gente se conhece desde antes da Independência. Não venha com mutatis mutandis pra cima de mim!
(E os dois, bons amigos que são, caem na gargalhada).
O garçom se aproxima e o STF pede mais dois chopes. Ou melhor, dois chope, como convém à liturgia avessa a latinórios do bar.
— É por minha conta — diz, querendo se passar por generoso.
Neste momento o Amigo Sábio Ainda Que Ébrio se levanta com a indignação falsa dos amigos de verdade, aqueles que só querem nosso bem, e começa dizendo que o problema começa justamente por essa incapacidade de o STF reconhecer de uma vez por todas que quem paga a conta nunca é ele, e sempre o contribuinte, o Povo da Silva. Que, por sinal, é amicíssimo da Democracia. Os dois saem até juntos para fazer compras.
Com os ânimos apaziguados por um gole demorado, o amigo se senta, olha para um lado e para o outro, pede desculpas e uma porção farta de lagostas e, num tom muito compassivo, explica ao STF que ele não é um tribunalzinho de meia-tigela qualquer. Não! Ele é a ins-tân-cia má-xi-ma do Poder Judiciário. Ele não pode agir como uma... como uma... como uma cortezinha moralmente falida.
(De novo).
O STF levanta a cabeça, envaidecido pelo “instância máxima”. E, como ins-tân-cia má-xi-ma do Poder Judiciário, o STF tem que se dar o respeito. Não pode ficar se gabando em entrevista, mandando mensagem desaforada para os coleguinhas, tuitando vulgaridades nem (deusolivreguarde) legislando, aconselha o amigo. Ao que o STF responde com os olhos esbugalhados de quem se sabe nu.
Sem se deixar intimidar, o amigo continua dizendo ao STF (o dedo em riste é só um tique) algo que talvez ele tenha esquecido. O que é compreensível. Entre tantas mesuras, servos pagos para lhe puxar a cadeira e títulos, é normal perder a noção da realidade. Daquilo que não está nas normas, no reino dos Incisos & Caputs. É normal, por exemplo, esquecer que o STF existe para legitimar as medidas do Estado. Para conferir às leis aprovadas pelo Congresso a chancela constitucional, que nada mais é do que o conjunto dos melhores valores (ao menos em teoria) defendidos pelo Povo da Silva.
— Mas eu já não faço isso? — pergunta o STF, percebendo imediatamente o ridículo da dúvida.
Ao notar que STF está naquele ponto ideal em que as reflexões começam a fazer sentido, o superego sussurra “eu avisei” e as sinapses irrompem numa epifania transformadora e virtuosa, o amigo continua explicando ao STF (como se ele não soubesse, como se ele fosse uma criança mimada de 5 anos) que a legitimidade do Poder Judiciário é diferente da legitimidade do Executivo e do Legislativo. Há um motivo para o STF não estar sujeito às irracionalidades do voto direto. O STF é a “consciência do Estado”.
O amigo, então, aumenta o tom (ou estica a corda, como queiram), dizendo que, na condição de “consciência do Estado”, guardião da Constituição, ins-tân-cia má-xi-ma do Poder Judiciário e principalmente como um senhor bem apessoado que almeja uma relação de longuíssimo prazo com a Democracia, Vossa Excelência, o STF, não pode se dar ao luxo de cometer nenhum deslize. Todo mundo está sabendo desse seu flerte aí com a Dita. A Democracia é, antes de mais nada, uma mãezona um tanto quanto permissiva e já tolera muita coisa absurda do Executivo e do Legislativo. Mas eles podem (ainda que não devam). Eles não são a “consciência do Estado”.
O STF abaixa a cabeça. O garçom chega com os dois chope. Alguém põe O Último Boêmio para tocar. O amigo vê no nobre interlocutor um espasmo que parece um soluço contido.
— Você acha que se daqui por diante eu me comportar a Democracia casa mesmo comigo?