Meu editor (que, não sei se vocês já perceberam, é um ente mítico e não tem nada a ver com o Jones Rossi) me liga todo afobado. Penso de pronto que fiz alguma coisa errada. Que pus crase onde não devia ou deixei sobrando uma vírgula. Por um instantezinho, entro em pânico e imagino que incluí uma mesóclise ou, pior, um “outrossim” no texto. Mas não. O editor quer é me falar do urubu.
O urubu, no caso, é urubua e atende pelo nome de Xaropinha. Ela foi resgatada por moradores de Prudentópolis, cidade de colonização ucraniana no interior do Paraná. A urubua (eu até escreveria “urubu fêmea”, mas fica aqui o meu protesto contra o patriarcado) é a mascote da cidade. Todo mundo a conhece. E ela tem até origem nobre, por ser filha de Libório, um urubu que também era famoso na cidade e que morreu atropelado por um caminhão.
Xaropinha vai à igreja e fica sentada quietinha ouvindo o padre. Xaropinha frequenta o centro de Prudentópolis e, quando está com fome, recebe comida de vários comerciantes. Xaropinha é acariciada pelas pessoas. Neste ponto, um especialista chato invade a reportagem para, como é característico de sua espécie (a do especialista, não a do urubu), dizer que é preciso evitar o contato com esse tipo de animal (o urubu, não o especialista) que, quando se sente ameaçado, ataca com unhas e bicos afiados. Ah, mas ele só diz isso porque não conhece a Xaropinha.
Como dá para perceber, fiquei feliz com o urubu. E, por isso, me pus a escrever sobre o urubu. Isto é, o texto que você tem em mãos até aqui. Se tudo tivesse saído como planejei, a esta hora você estaria lendo mais sobre o urubu real e o urubu simbólico. Mas não deu. Eu ia justamente começar este parágrafo quando outro urubu, esse de mau agouro, pousou em minha sorte. E vamos recorrer novamente à mítica ligação telefônica do igualmente mítico editor para nele depositar toda a culpa pela mudança de assunto neste texto.
“Vem meu amor, me tirar da solidão”
“A Xaropinha caiu”, anuncia ele, dando uma de jornalista sindicalizado e usando o jargão da profissão. Por um segundo penso que o urubu caiu do telhado, da fiação, da torre da igreja, sei lá. E vivo um miniminiminiluto pela ave. Mas aí o editor explica: “Esquece o urubu. A Xaropinha é legal, mas o Xaropinho é mais. E é sobre ele que quero que você escreva”.
Antes que eu tenha tempo de contestar, ele me explica que o senador Randolfe Rodrigues noivou e, para registrar o momento, um jornalista daquela que um dia já foi a maior revista do Brasil se derreteu todo em loas e lugares-comuns, e compôs um texto para o qual o prestativo editor me mandou um link. Arrependido antes do gesto, clico no link e me ponho a decifrar o estilo sôfrego. Como se meus olhos fossem lentamente saboreados por corvos, chego ao ponto final. O editor continua na ligação, esperando que eu diga algo. E digo. Ah, se digo!
“O que é que eu vou escrever sobre isso?!”, pergunto, tomando todo o cuidado do mundo para não exagerar nos pontos de exclamação. Ele abre a boca para responder, mas me encho de coragem e o interrompo. “Olha esse trecho aqui”, anuncio, fazendo uma pausa que equivale a dois pontos e aspas. “E os convidados – entre eles, a atriz Elizabeth Savalla e a empresária Paula Lavigne – se deixaram contagiar pela felicidade do futuro casal. Aliás, que companhias agradáveis, as duas. Claramente, um dos Brasis que deu certo” (grifos meus).
Do outro lado, o editor ri, mas não diz nada. Diante do silêncio constrangedor que se instala entre nós e, quero crer!, por causa da minha carranca ameaçadora, ele me atiça: “Lindo trecho. Que mais?”. Fico furioso. Você não ficaria?! Meus olhos percorrem o texto e encontram outra frase que leio em voz alta, com uma ênfase que aqui transformo em itálico: “Depois, não é qualquer dia que se ganha a maior honraria da França, e uma das condecorações mais famosas do mundo, mas mantém-se a simplicidade”.
Sentindo que o editor está prestes a sucumbir à minha excelente estratégia de destacar os piores trechos de um texto que alterna entre o puxa-saquismo e a bajulação, respiro fundo e, antes de declamar a frase a seguir, pergunto se ele está preparado para uma explosão de cafonice. Contendo o riso e degustando a expressão “explosão de cafonice”, ele faz que sim com a cabeça. Ao que emendo: “E foi cantando justamente esta parte: ‘Vem meu amor, me tirar da solidão’ [música de Ivete Sangalo!], que o senador surpreendeu Priscila Barbosa – e boa parte dos convidados – puxando ela para perto e entregando uma bela aliança".
Estou com um último trecho engatilhado para o caso de meu editor continuar teimosamente resoluto (“Procurou as dores do nosso tempo para entregar, de coração aberto, a homenagem recebida do presidente Emmanuel Macron”). Mas ele sabiamente me pede para parar. “Já decidi”, diz, sem dizer mais nada. Me sinto ainda mais dramático do que o normal. Tenho vontade até de dizer que me sinto como um condenado à morte à espera do beijo frio da guilhotina. “Desembuxa!”, peço, assim com xis mesmo, tamanha a ansiedade.
Ao que ele responde com a voz calma e os bons modos que lhe são característicos: “Não me convenceu. Mas faz o seguinte. Escreve sobre o urubu, mas também escreve sobre o Xaropinho, digo, sobre o senador e esse texto do noivado aí”. Ainda tento dizer que uma coisa não tem nada a ver com a outra, mas ele não quer nem saber. “Agora me dá licença que vou escutar Ivete Sangalo”, diz. E desliga na minha cara.
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