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Acordei com um gosto ruim na boca. Sem entender por que o dia tinha amanhecido com trilha musical de funeral, fui tomar um banho. Banhos longos geralmente me animam na mesma proporção em que deixam os ambientalistas furiosos. Nada. Tentei café com leite na cor perfeita, waffle com manteiga e mel, carinho na Catota e, num gesto de desespero, tentei até a “Grande Coletânea de Piada Ruins ou: Por que a plantinha não foi atendida no posto de saúde?”, de Jay Rossi.
Aí, por milagre ou coincidência (você decide!), o Facebook trouxe à tona a lembrança de um dia, há quatro anos, em que achei por bem anotar uma passagem de “This is Water”, de David Foster Wallace – para mim, e não sem um quê de hipérbole, o texto mais importante do século XXI. Prepare-se, porque é pesado: “A liberdade mais importante é aquela que envolve atenção e consciência e disciplina, e ser capaz de realmente gostar dos outros e de se sacrificar por eles todos os dias e de todas as formas, incluindo as nada sensuais. Isso é que é liberdade. Isso é que é educação e entendimento de como pensar. A alternativa a isso é a irracionalidade, o instinto, a sensação constante e incômoda de que tivemos e perdemos algo de infinito”.
Pouco depois, apareceu na tela do celular a imagem de Roberto Jefferson. De imediato me lembrei de Oswaldo Eustáquio e Daniel Silveira. Pessoas que não conheço, com as quais nunca troquei uma palavra (e nem sei se quero) e cuja liberdade de expressão defendi recentemente. Fiquei ali estudando as fisionomias como um Lombroso tardio e finalmente entendi a razão do meu mal-estar.
Liberdade para ser mau
Em toda essa discussão sobre a liberdade de expressão e o arbítrio do Supremo Tribunal Federal, há dois aspectos que devem ser levados em conta. O primeiro é o de que, observa o bom senso que nos irmana, os “perseguidos” (antes de implicar com as aspas, leia o texto todo, por favor. Depois, pode implicar) pelo ministro Alexandre de Moraes não fizeram bom uso da liberdade que lhes foi dada e posteriormente tirada. Pelo contrário. Por maldade, equívoco ou descuido, eles usaram a liberdade que nós, a sociedade, lhes legamos para pregar algo que não chega nem perto da atenção, disciplina, afeto e sacrifício de que fala David Foster Wallace.
Evocando Bernanos, pergunto: essas pessoas querem liberdade (e nós queremos a liberdade deles, que também é a nossa) para quê? Lógico que a resposta cabe apenas a eles e que, em se tratando de palavras, não é papel de outra pessoa interferir na sintaxe moral alheia. Mas convém citar aqui também meu amigo César Miranda, que outro dia argumentou com uma ênfase semisséria e semijocosa que ninguém pede liberdade para agir como santo.
A resposta à pergunta de Bernanos e ao comentário de César Miranda talvez esteja na frase atribuída a Thomas Jefferson (embora nunca tenha sido encontrada nos escritos dele) e repetida à exaustão. Diz a frase que o preço da liberdade é a eterna vigilância. Oquei. A frase faz com que nos sintamos vivos. Heróis numa distopia até. Mas tenho cá para mim que essa vigilância aí tem a ver também com a autovigilância.
Qualquer pessoa que examine as falas e atos simbólicos dos “presos políticos” reconhece neles uma intenção perversa de destruir aquele que veem como inimigo. Ou seja, reconhece um ímpeto não virtuoso que os aprisiona. Diria até que é maldade. E algo que talvez tenha se perdido na discussão (até porque ao outro lado não cabe o papel de “vítima") é justamente o fato de que a liberdade de que gozam os homens para serem maus não torna a maldade menos reprovável.
Liberdade para ser bom
O segundo aspecto tem a ver com a “vítima” da liberdade de expressão perversa dos ditos “perseguidos políticos”. Alexandre de Moraes, escravizado pela vaidade e por um conceito corrompido de honra, tem toda a liberdade do mundo (e até alguns incentivos) para agir corretamente. Imbuído da supertoga, contudo, optou pela falsa virtude de proteger a “democracia” a qualquer custo.
Para explicar por que a cruzada de Alexandre de Moraes é imoral, primeiro tenho que reconhecer que sou um vândalo de livros. Desavergonhadamente. E o tempo todo. Estou lá lendo o livro, na esperança hoje meio infundada de chegar até o fim dele, quando me deparo com um trecho interessante. Sem enrubescer, pego a caneta - a bicona velha de guerra - e sublinho. Geralmente faço também um ponto de exclamação estilizado à margem, porque tenho uma certeza tola (todas as certezas são meio tolas) de que um dia abrirei aquele livro naquela página e me lembrarei exatamente das sinapses que me fizeram pensar “ó, que trecho interessante, deixe-me vandalizar o livro aqui porque vale muito a pena”.
Ontem mesmo, relendo o Ivan Ilitch, sublinhei “gostava de fazer sentir que ele, capaz de esmagar, tratava-os com simplicidade”. Neste trecho, Tolstói (Tolsta, para os íntimos) conta a vida pregressa do homem bom, mas nada especial, que dá nome à novela. Hoje cedo, contudo, ao abrir o livrinho e me deparar com o trecho sublinhado quando eu já era embalado no colo de Morfeu, tive dificuldades para me lembrar do que me levou a gritar “Eureka!” e acordar a Catota, que me encarou com aqueles olhos azuis para sempre enfadados.
Aí me lembrei da liberdade perversa dos “perseguidos”. Uma coisa leva a outra e temos que, pela métrica da “compaixão jurídica”, Alexandre de Moraes é o anti-Ivan Ilitch. Isto é, munido da liberdade de agir virtuosamente, usando do chamado devido processo legal, o juiz optou por esmagar seus adversários com prisões, operações de busca e apreensão, censura explícita, tornozeleira eletrônica, etc. Ou seja, diante da possibilidade de agir ética e sabiamente, aspirando a virtude ou santidade, Alexandre de Moraes escolheu usar a força que, apesar do véu de legalidade, não tem outro objetivo que não impedir que o outro exerça seu livre-arbítrio.
E é aí que entra a hierarquia do dever. Membro da Suprema Corte do país, cabe ao ministro fazer uso da “reputação ilibada e notável saber jurídico” que lhe renderam o cargo para se mostrar moralmente superior àqueles que o ofenderam e ameaçaram. Detentor do poder de força, Alexandre de Moraes, em tese, não tem a liberdade de ser mau. Embora transborde naquele crânio reluzente a liberdade de ser bom.