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Lá vamos nós, mais uma vez, falar de Oswaldo Eustáquio. Que, em tempos normais, seria apenas mais um ser humano, por acaso brasileiro, por acaso alfabetizado, por acaso com acesso à Internet e por acaso crítico um tanto quanto descalibrado das instituições que ele considera ideologicamente carcomidas. Mas que em tempos excepcionais passou dez dias na cadeia, a mando do Supremo Tribunal Federal, por falar/escrever bobagens, dando início a uma das disputas mais tolas de um século fértil em tolices do gênero.
Falo, evidentemente, do “dilema profissional” de Eustáquio. Blogueiro, gritam uns; jornalista, berram outros. Eu, aqui do conforto de quem não consegue entender nem essa disputa lexical nem a lógica por trás da perseguição a uma pessoa só porque não concordamos com a visão de mundo dela, me pergunto se isso é mesmo uma questão importante – e para quem. Se ele fosse médico, sua prisão seria mais digna de escândalo? Se fosse um catador de papel será que alguém se levantaria contra esse absurdo?
O “dilema” é mais simples do que parece e revela, entre outras coisas, todo o amor que o brasileiro dito intelectualizado nutre por um pedaço de papel capaz de lhe conferir uma identidade – basta ver o caso recente do quase-ministro da Educação Carlos Alberto Decotelli. Não se engane: quem prega jocosamente em Eustáquio a letra escarlate de “blogueiro”, ignorando o que diz a carteira de trabalho e o currículo (espero que verdadeiro) dele, é porque há muito tempo abdicou da condição de indivíduo e só consegue se ver como parte de uma classe sujeita a uma ortodoxia.
Além disso, ao ignorar ou até celebrar a flagrante imoralidade da prisão de uma pessoa por crime de opinião e se ater à picuinha blogueiro/jornalista, é como se os colegas de profissão de Eustáquio traçassem uma linha divisória igualmente imoral entre a opinião certa (a deles) e a opinião errada (a de todos os que não ostentam o diploma cafona na parede).
Contradição inerente à democracia
Quem se manifesta sobre a prisão inaceitável de Oswaldo Eustáquio, mas insiste em chamá-lo de “blogueiro”, está usando um artifício vil para desqualificá-lo, como se as palavras escritas nesse tipo de plataforma não merecessem atenção. O leitor atento aqui percebe quão contraditório é isso. Afinal, se as palavras de um blogueiro não valem absolutamente nada, por que prendê-lo?
A tentativa de desqualificação é tão óbvia quanto contraproducente. E quem lê, ouve ou assiste ao noticiário que faz uso desse expediente percebe. É como se a boca de quem dá a notícia se contorcesse numa expressão de nojo. De uma ojeriza que nada tem a ver com o meio usado por Eustáquio e tantos outros para expressar suas ideias – admiráveis ou não. Tem a ver com o conteúdo das postagens deste ou daquele blogueiro de sua (nossa) preferência.
De Eustáquio em específico se diz duas coisas. Primeiro que ele é um contumaz disseminador de notícias falsas. Mas talvez já esteja na hora de desmistificar um pouco esse negócio de notícia falsa. As pessoas falam em notícias falsas como se elas fossem um fenômeno novinho em folha, nascido das entranhas das redes sociais. Como se as pessoas fossem incapazes de diferenciar uma mentira deslavada de uma verdade ou até semiverdade. E como se essas notícias falsas (também conhecidas como boatos, fofocas e mentiras) tivessem o poder de mudar o destino do país.
Essa fetichização da notícia falsa é um fenômeno interessante porque escancara o paternalismo com que alguns intelectuais, jornalistas ou não, tratam seus leitores, ouvintes ou telespectadores. Todo esse medo da mentira é também uma distorção do próprio conceito de credibilidade no qual se baseia o trabalho da imprensa. Credibilidade não é algo palpável; não é algo impresso no granito da eternidade. É algo que se conquista aos poucos e que infelizmente pode se esvair de uma hora para outra.
Não à toa, o conceito de notícia falsa, embrulhado na terminologia anglófila, tem atraído políticos oportunistas que acreditam ter o poder de domesticar a realidade para adequá-la a seus interesses.
Em segundo lugar, diz-se que Eustáquio é um militante antidemocracia. Alguém que estaria querendo impor uma ditadura fascista, bolsonarista ou bolsolavista (chame como quiser) no Brasil. Um ser deplorável, digno de prisão, que agiria nas trevas da notícia e que não comunga dos valores liberais que supostamente nos unem desde que Tancredo Neves foi indiretamente eleito.
Aqui o problema é mais incômodo. Porque é próprio da democracia (ou melhor, Democracia) abrigar com parcimônia aqueles que a atacam (até o extremo proposto no chamado Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper). Eu iria além e diria que a Democracia precisa de pessoas antidemocráticas para mostrar ainda mais seu valor. E a história recente está cheia de intelectuais não-fascistas que, de uma forma ou de outra, questionaram vários dos instrumentos democráticos.
Assim de memória me vêm à mente, por exemplo, Murray Rothbard, que no livro Anatomia do Estado aponta o Poder Judiciário como o elo moralmente mais fraco da Tríplice Aliança que nos governa. Hans-Hermann Hoppe, em seu panfletário O que Deve Ser Feito, vai além e propõe que se use o “populismo de direita” para se acabar com o que ele considera uma perversão da democracia. No remoto século XIX, o velho e bom Tocqueville, observador da Revolução Americana, também tinha receio quanto à suposta perfeição do tal governo do povo, pelo povo e para o povo.
“Paladino da Liberdade”
Essa contradição inerente aos regimes democráticos é uma das coisas que os torna tão fascinantes. Ao prender um homem por se posicionar contra as instituições democráticas, portanto, o ministro Alexandre de Moraes e seus colegas do Supremo Tribunal Federal apenas demonstram quão frágeis são essas mesmas instituições. A prisão de Oswaldo Eustáquio, bem como de qualquer pessoa que aponte o dedo para aquele castelinho de areia projetado por Oscar Niemeyer na Praça dos Três Poderes, acaba soando como uma confissão de fracasso.
Isso sem falar no efeito colateral do martírio. Ao prender um blogueiro, jornalista, médico ou catador de papel porque ele expressou sua vontade de ver o STF fechado, o ministro criou um monstro. Neste caso, um monstro envolto em virtudes que eu, pessoalmente, considero falsas. Ou alguém duvida que a opinião antidemocrática de Eustáquio, antes restrita aos grupos mais exaltados, ganhará força e ecoará mais pelas veredas da Internet? Assim, aquele que era apenas um jornalista sem expressão expondo para meia-dúzia sua ignorância política se transformou, por obra e graça do ministro Alexandre de Moraes, no Paladino da Liberdade - o que ele evidentemente não é.
Ah, contra-argumentarão alguns, mas os ministros do Supremo Tribunal Federal estavam tendo sua honra violada com palavras de baixíssimo calão e acusações sem fundamento. Estavam, absurdo dos absurdos, tendo suas decisões questionadas. Eustáquio inventava teorias malucas para justificar esse ou aquele veredito. Ele se recusa (recusava?) a aceitar a infalibilidade jurídica e moral dos homens e mulheres de capa preta que, por exemplo, recentemente negaram liberdade a um jovem preso por furtar dois frascos de xampu.
Diante do que pergunto: será que os ataques à honra dos ministros não têm a ver com o protagonismo que o Judiciário assumiu na política brasileira desde o julgamento do Mensalão? Não seria efeito colateral da hiperexposição narcisista dos membros da Corte, de uma celebrização do saber jurídico que, pensando bem, também pode ser interpretada como um desvirtuamento das funções democráticas? E que honra frágil é essa que se deixa abater por... palavras? Nessa toada, em breve o STF haverá de criar o crime de ministro-do-esse-te-efe-fobia.
Quanto a questionar sentenças e não aceitar a sacralização de Suas Excelências (em que se pese o tom estupidamente raivoso dos questionamentos e das críticas), não seria justamente o trabalho de um jornalista incomodar, importunar, chafurdar no lixo do poder e expor todas as caquinhas que porventura encontrar?
Um nobre Glenn Greenwald
Diante da prisão escandalosamente arbitrária de alguém que um dia fez até parte da estrutura sindical, o silêncio das eternamente indignadas entidades de classe e dos formadores de opinião sempre muito incisivos em sua defesa da liberdade, sem falar nessa birrinha em chamar Oswaldo Eustáquio de blogueiro, e não de jornalista, expõem um duplipensar que não é novo, mas que sempre tomou muito cuidado para não ficar assim tão evidente. Como se diz por aí, caíram as máscaras.
E eu poderia aqui citar vários momentos da história recente em que a “classe” se uniu contra os desmandos dos poderosos que tentaram silenciá-la ou intimidá-la. Mas prefiro terminar este texto destacando uma notória exceção ao silêncio corporativista no caso Oswaldo Eustáquio – que jamais será estudado nas faculdades de jornalismo, por motivos óbvios.
Me refiro à postura nobilíssima do jornalista (nunca blogueiro) Glenn Greenwald, de quem discordo em praticamente tudo, mas que despertou minha mais sincera admiração ao dar uma lição de, vá lá, espírito democrático, solidariedade e até humanismo ao condenar a prisão de Eustáquio.
O mesmo Eustáquio que, vale lembrar, ofendeu a mãe (!) de Greenwald e que foi condenado a pagar indenização por isso. O mesmo Eustáquio que é assim uma espécie de nêmesis de todos os jornalistas do Intercept. O mesmo Eustáquio que Greenwald poderia muito bem querer ver mofando na cadeia. O mesmo Eustáquio que apoia o governo de Jair Bolsonaro – do qual Greenwald e os seus são opositores virulentos.
O que mostra que defender Oswaldo Eustáquio neste caso específico não significa concordar com suas (dele) visões políticas ou com seus métodos de fazer jornalismo. Não significa nem mesmo endossar o caráter dele. Não significa, de jeito nenhum!, engrossar o coro daqueles que pedem que o STF seja fechado. Tampouco significa se juntar à turba jacobiníssima que pede guilhotina para este ou aquele membro do Judiciário.
Significa apenas constatar que, numa Democracia digna do “d” maiúsculo, com tribunais respeitáveis e ministros da Suprema Corte acima de qualquer suspeita, todos, independentemente do registro profissional e do diploma cafona na moldura igualmente cafona, têm o direito de falar/escrever o que bem entender. E, se incorrer nos crimes de injúria, calúnia e difamação, responder por isso se submetendo ao devido processo legal. E, uma vez condenado, pagar pelo erro – o que geralmente significa, pelo baixo potencial ofensivo do crime, algumas cestas básicas e algumas horas de trabalho comunitário.
Qualquer prisão ou persecução criminal fora disso é expressão de um autoritarismo temeroso, digno da alcunha que tanto incomoda aqueles que constitucionalmente detêm o monopólio da tomada de decisão: “Ditadura de Toga”.
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