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Abro a Gazeta do Povo em busca da inspiração que anda meio fugidia, a danada. Encontro Marcel Van Hattem ameaçado pelo STF. Nada de novo no front, infelizmente. O editorial diz que os dólares estão fugindo e por um milésimo de segundo imagino Alexandre de Moraes pedindo a extradição das verdinhas. Mas não quero falar de Alexandre de Moraes. Cansei de Alexandre de Moraes.
Mas o que é isso que encontro aqui? Guilherme Grandi informa que... ah, não, ele de novo? Isso mesmo: Alexandre de Moraes, o incontornável, receberá de uma revista o Troféu Dom Quixote, enquanto seu fiel escudeiro, Rodrigo Pacheco, ficará com o prêmio Sancho Pança. (Sobre isso, leia a “quase errata” no fim do texto). Tem algo aí, penso e já já desenvolvo, porque antes quero dizer que hoje mais cedo estava lendo Paulo Mendes Campos e bateu a saudade.
(Pode pular essa parte, se quiser)
Me refiro à saudade de quando os jornais estavam cheios de vida. De crimes passionais, de tragédias familiares, de gente que caiu no bueiro, de alguém que ficou rico de uma hora para a outra, de milagres, de histórias de assombração, de malucos tratados como tal, de suntuosas festas de debutante, de querelas entre vizinhos, de recordes inusitados, de coincidências e curiosidades deliciosamente inúteis.
Essas eram as matérias-primas da crônica. Era o que tornava o noticiário fascinante, e não deprimente. O que nos encantava, e não esse monte de nomes e siglas e declarações e números que nos asfixiam numa eterna bruma de indignação. Era, repito, a vida. A vida observável e palpável e invejável e assustadora. E não esses ventos que nos chegam de Brasília e que servem apenas para esfregar nossa pequenez em nossas fuças cansadas de tanto pagar imposto e sustentar vagabundo.
Esse Brasil!...
Mas disse que a imagem de Alexandre de Moraes como Dom Quixote e Rodrigo Pacheco como Sancho Pança é interessante – e é. Porque é um prêmio com cara de insulto. Só que o nível do ministro e do senador, bem como da revista que os homenageia, é tão baixo que eles nem percebem que os personagens de Miguel de Cervantes estão bem distantes do heroísmo e da lealdade que eles pretendem celebrar. Aliás, em qualquer República digna do nome um funcionário público como Rodrigo Pacheco deveria recusar um prêmio que exalta a relação de lealdade entre fiscal e fiscalizado. Ah, esse Brasil!...
Quero me ater, porém, à associação entre os personagens fictícios e as caricaturas reais que nos governam. Dom Quixote, por exemplo, é um fidalgo (não confundir com “féla”) que enlouquece de tanto ler e que acaba por se ver como o herói que não é. Na companhia de Sancho Pança, portanto, ele sai pelo mundo lutando até contra os famosos moinhos de vento – que, mais do que um clichê, é uma forma de dizer que a realidade insiste em destruir aqueles que vivem no mundo da fantasia – o que esperamos que aconteça um dia com Alexandre de la Mancha.
Pouco sal na moleirinha
São várias as associações possíveis entre o lunático e o personagem de Cervantes. Nenhuma lisonjeira. Eis aqui uma delas: Dom Quixote é um utópico – no pior sentido de um termo para o qual apenas os loucos encontram um bom sentido. É daqueles que acreditam saber identificar os problemas da sociedade, para os quais têm pronta a solução mais adequada: a sua (dele). E sobre mais essa característica abominável que une ministros, tiranos e psicopatas, convém citar aqui meu amigo Rafael Ruiz: “A utopia dialoga não com a realidade, mas com o modelo que ela própria já construiu”.
Já Sancho Pança é um serviçal “de pouco sal na moleirinha”, para usar as palavras do próprio Cervantes. Ele começa o livro como uma espécie de “voz da razão”, repetindo ditados populares como uma espécie de arauto da sabedoria tradicional. Aos poucos, porém, Sancho Pancheco passa por um processo de “quixotesquização”. Um sinal de que o idealismo insano tem o poder de contaminar o bom senso do homem comum, corrompendo-o. Mas nunca o contrário.
Errata (ou quase isso)
Ops. Me confundi, mas não muito. Pelo menos não a ponto de inviabilizar o argumento. Esclarecendo, pois: este ano, quem vai receber o Troféu Dom Quixote é na verdade o senador Rodrigo Pacheco. De acordo com a revista, o troféu é dado a personalidades “que se destacam na promoção de valores como a Justiça, com postura mais pragmática”. Ou seja, a justiça de conveniência. Bem a cara do senador ganhar esse mesmo troféu que enfeita a prateleira de Alexandre de Moraes desde 2021. Parabéns para ele!
Já o Prêmio Sancho Pança é dado a quem já recebeu o Dom Quixote. Ah, bom! Isto é, aos lunáticos e utópicos que já foram confundidos com heróis uma vez e ainda assim “se mantiveram fiéis aos mesmos princípios”. Que princípios? Só se forem os princípios dessa loucura que não se enxerga como tal e que é capaz de destruir a democracia para defender a democracia ou acabar com a liberdade para garantir a liberdade. O Sancho Pança da vez, pois, é o ministro Alexandre de Moraes. Não faz nenhum sentido, mas, ah, quem se importa com isso hoje em dia?! Se quiser encontrar sentido, sei lá, use a sua criatividade.