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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Como é bom viver a pandemia sob o governo Bolsonaro

Deve ser horrível viver em países democráticos, liderados por homens ou mulheres educados, esclarecidos e bonzinhos, e não ter ninguém para culpar.
Deve ser horrível viver em países democráticos, liderados por homens ou mulheres educados, esclarecidos e bonzinhos, e não ter ninguém para culpar. (Foto: Pixabay)

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Em se tratando de pandemia, nada faz muito sentido. As medidas de isolamento social são uma piada que já perdeu a graça. E qualquer um que tente encontrar um padrão para a doença se perde em exceções. Sempre há um jovem saudável que morreu “em questão de dias”. E sempre há idosos frágeis que pegaram Covid-19 e nem febre tiveram.

Tamanha desinformação faz com que nos sintamos à mercê do destino. Do caos. E, em última análise, do vírus. Uma estrutura que mal compreendemos e que até nossa imaginação mais fértil e esclarecida tem dificuldades para conceber. Em meio à tormenta sanitária, faz sentido que nos perguntemos se há alguém no leme. O passo seguinte é discutir se rumamos para o caminho certo: o da salvação.

Mas você já navegou por mares nunca dantes navegados, como dizia o caolho? Simplesmente não há pontos de referência claros. Ainda mais quando a abóbada do raciocínio, embotada de ódio, está nublada. Não adianta. Enquanto não nos sentirmos novamente no controle da situação (uma sensação sempre falsa, como sabiam os estoicos), procuraremos culpados a torto e a direito.

É por isso que eu digo no título que é bom viver a pandemia sob o governo de Jair Bolsonaro. E não sob Merkel. Ou sob o primeiro-ministro da Suíça, quem quer que seja. Ou sob Xi Jinping – mas aí são outros quinhentos. É bom ter alguém tão insuportavelmente comum e detestável para culpar por nossos infortúnios. A incompetência, repare bem, é sempre alheia. Ou, para usar a célebre frase final da peça “Entre Quatro Paredes”, de Sartre: o inferno são os outros.

O inferno são os outros

O inferno são os outros entre quatro paredes. Entre as fronteiras também. E ainda nas redes sociais. São sempre os outros os incompetentes e de caráter duvidoso, os que furam a fila da vacina e os que escondem oxigênio, os que têm interesses escusos ou são “filhos de uma ideologia necrófila”.

Que bom, então, termos um governo desastrado e um governante tosco para culpar. Assim, não precisamos nem filtrar as informações que nos chegam a fim de compormos uma imagem a mais realista possível da tragédia. Não precisamos olhar para dentro e investigar a origem do nosso medo. Do nosso pânico. Não precisamos nem cogitar a alternativa insuportável de que talvez, só talvez, a sensação da pandemia tenha sido inflada por uma sensação anterior, e falsa, de segurança e abundância.

Deve ser insuportável viver sob um governo competentíssimo, comandando por uma pessoa educada, que se manifesta por meio de aforismos cuidadosamente preparados por uma equipe de redatores; que tem sempre por perto o conselho de especialistas muito sábios (com o perdão pela redundância); que não usa “no tocante” nem “talquei”; que agora mesmo está elaborando um complexo, mas eficiente, plano de vacinação; que demonstra cuidado com as nossas vidas.

E, no entanto, lugares assim, com líderes políticos que se enquadram mais ou menos nesse ideal, também estão sofrendo com a Covid-19. Uns, como a Alemanha da polidíssima Merkel, até mais do que o Brasil. Deve ser horrível ver as pessoas morrendo, a economia sendo destruída, a saúde mental da população indo para o esgoto – tudo sem nem poder pedir impeachment, sem xingar alguém de genocida, sem debochar da ignorância do tal “tratamento precoce”.

Política de extermínio por omissão

Mas, se o caos é generalizado e a sensação de impotência (propulsora da raiva) não encontra fronteiras, fico aqui me perguntando como as pessoas que vivem em democracias sólidas comandadas por homens extraordinários estão lidando com a pandemia. Será que culpam a China ou algum gourmand de morcego? Será que culpam as mudanças climáticas? A OMS? Tem ainda os que vivem em ditaduras – também comandadas por homens extraordinários. Como essas pessoas lidam com a impossibilidade de derrubar o governo e ver a ordem política-econômica-sanitária reinstalada? Será que, neste exato momento, há um chinês lá no interior da província de Sichuan abafando o grito de “Fora Xi!” com o travesseiro?

Não estou imune a isso. Também sinto raiva. E, às vezes, diante da tela do computador, me desespero e me deixo contaminar por esse desejo inconsciente de buscar culpados pelo que estamos vivendo. Ou deixando de viver. É tão fácil. E tão bom. Numa hora você se vê perdido ao tentar acompanhar as porcentagens de eficácia das diferentes vacinas e, na outra, depois de dois ou três socos na mesa e de certezas bradadas ao vento, é como se você alcançasse uma baía, com sua promessa de águas mais tranquilas e viagens mais serenas no futuro.

É bom. E, ah, você não tem ideia do quão mais fácil seria me juntar à nau dos indignados e aqui ecoar o discurso segundo o qual Bolsonaro é um inequívoco vilão. Um genocida. Um assassino. Ou, para usar a novilíngua tão cara aos revoltados, alguém que “deliberadamente impôs uma política de extermínio por omissão”. Mas, por excesso de escrúpulos ou talvez estupidez, vou novamente correr o risco de ser visto como alguém que defende um governo. Pior, um governante. [Emoji de carinha triste].

É bom viver a pandemia sob o governo Bolsonaro. Mas só para quem o tem como bode expiatório. Para mim, que continuo perdido e, não nego, um tanto quanto amedrontado, sem falar no cansaço e na solidão, é péssimo não ter para quem apontar o dedo e gritar “genocida”.

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