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Então você está com raiva. Muita raiva.
Você vê o presidente Jair Bolsonaro na televisão e tem vontade de bancar o Elvis e dar um tiro no aparelho. Mas em vez disso, e porque ainda se considera uma pessoa civilizada, você simplesmente sai na sacada, grita um palavrão e faz batuque com a pobre panela. Ou então é o deputado Rodrigo Maia quem desperta sua raiva. Você mal consegue ouvir a voz dele sem sentir engulhos. Ou ainda um deputado, um governador, um artista de novela ou, argh!, um jornalista.
Você simplesmente não consegue passar um minuto do dia sem estar com raiva.
Entendo. A julgar pelo que se lê aí, sobretudo nelas, as famigeradas redes sociais, quase todo mundo está com os nervos à flor da pele hoje em dia. Nada presta. Nada é bom. Está tudo errado. Todo mundo é mau caráter. Ou burro, idiota, energúmeno mesmo. Ninguém vê o plano oculto que eu vejo, ninguém percebe que tal solução proposta é uma balela. Aliás, até o clichezão “nervos à flor da pele” está errado. Que pele, meu amigo?! O nervo está é exposto!
Aqui do conforto incômodo do meu isolamento social semiobrigatório, tenho pensado muito na raiva. Própria e alheia. Raiva que está para o século XXI como o tédio estava para aquele comecinho chato mesmo de século XIX, quando a maior ambição de um poeta era morrer jovem e de tuberculose. A raiva que, nestes primeiros anos de milênio, encontrou meios bastante eficazes de se expressar. Digo, se é que há algo de eficaz em se expressar a raiva.
Não há. A raiva pode até ser divertida numa mesa de bar, mas em termos práticos ela é das coisas mais inúteis que existem. Estéril mesmo. Nunca vi a raiva dar origem a qualquer coisa que preste. Nenhum bom romance jamais nasceu da raiva do autor. Nenhum quadro. Nenhum filme. Nenhuma lei. Nenhum veredito. Nem mesmo o rock, tido em algum momento como expressão musical da raiva, nasceu da raiva em si.
Porque é próprio da raiva destruir, não construir. A única coisa que a raiva ergue é uma pilha de almas retorcidas. Porque a raiva é impulsiva e a destruição também. Um golpe de marreta (retórica e física) e acabou. A raiva tem como finalidade o extermínio de algo ou alguém cuja existência nos incomoda. Raiva é também pulsão de morte.
Mas qual a origem dessa verdadeira pandemia de raiva que nos irmana num estado de irritação permanente? A raiva nasce de um desejo narcisista de moldar o mundo de acordo com nossa vontade. É como se fôssemos todos bebês tentando encaixar a pecinha quadrada no buraco triangular. O. Tem. Po. To. Do. Eu não queria Fulano como presidente? Raiva nele! A pizza com menos catupiry do que eu esperava na borda? Toma aqui uma estrelinha só no iFood! Sicrano escreveu algo com o que não concordo? Eis aqui meu comentário mordaz e cheio de pontos de exclamação!!!!
De alguma forma, nos últimos tempos aprendemos a acreditar que o mundo só é um lugar habitável e prazeroso quando ele se encaixa em nossos múltiplos ideais de perfeição – isto é, quase nunca. Isso se aplica tanto à política quanto à vida privada, em nossas relações com amigos e com as pessoas que juramos amar incondicionalmente – desde que elas se mantenham tão perfeitas quanto a imagem que projetaram em nossos primeiros encontros e, portanto, não despertem nosso espírito sempre à beira de um ataque de raiva.
É triste (e, ironicamente, dá raiva), mas nós nos transformamos em criança birrentas que não suportam ser contrariadas. Não toleramos a menor frustração (nosso candidato foi derrotado nas eleições, tem quem acredite na planicidade da esfera, o Coxa contratou um perna-de-pau, como assim você não amou aquele livro tanto quanto eu?!) e já logo corremos para as redes sociais (ou caixa de comentários) a fim de desopilar o fígado. E nos sentimos aliviados quando o cheiro nauseante do nosso fel esparramado pelo espaço virtual dá origem a uma reação em cadeia e vemos nossa raiva ecoando pelo canyon estéril da indignação coletiva.
É quando arriscamos um sorriso, banhados que estamos no prazer fugaz da perversidade cotidiana.
Não sei você, mas eu me cansei de estar permanentemente com raiva de tudo e de todos. De querer que o mundo se adapte aos meus ideais de perfeição. De ansiar, ainda que inconscientemente, por destruir tudo o que há de errado – sem ter uma ideia clara do que pôr no lugar ou fazer de diferente. Cansei de reclamar, de esbravejar, de fazer com que os outros vejam e aplaudam e reforcem o coro da minha indignação virtuosa.
E talvez por isso mesmo eu esteja, neste momento, com raiva de sentir tanta raiva.