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Ontem (1), o avião que trazia Lula e sua numerosa comitiva da desastrosa viagem aos Estados Unidos sofreu uma pane qualquer e ficou quatro horas dando voltas e mais voltas no ar, até pousar em segurança na Cidade do México. E se você achou que ficou faltando um “infelizmente” na frase anterior é porque você pensou a mesma coisa que eu. Teve a mesma esperança errada que eu. Sonhou os mesmos sonhos ridículos que eu.
A notícia me chegou lá pelas 19 horas, graças ao primo Vladimir. Na hora, corri para um desses sites que monitoram o tráfego aéreo e fiquei uns bons minutos olhando aquele aviãozinho animado fazendo 8s ou ∞s no ar. Pensando & pecando. E se o aviãozinho desaparecesse de repente? Seria a minha reação (1) santa, de acordo com minha professada crença na dignidade inerente a todos os seres humanos, inclusive a do Lula, ou (2) seria ela mundanamente alegre, de uma alegria motivada por minhas paixões políticas mais rasteiras?
Microinstante
Certo de que estava mais próximo do 2 que do 1, chacoalhei a cabeça como se fosse um personagem de desenho animado expulsando os maus pensamentos pelos ouvidos. De nada adiantou. Porque no instante seguinte começaram a surgir divertidas teorias conspiratórias que associavam a postura antissemita de Lula à pane no avião. Afinal, Israel está empenhado em destruir seus inimigos e o Mossad é especialmente criativo quando se trata de atingir certos objetivos. Dois mais dois igual.
Disse de mim para mim que aquilo era uma bobagem. Que era ampliar a importância diminuta de um anão diplomático e moral. E, por um microinstante, quase soltei um suspiro de alívio, na esperança infundada de que a teoria da conspiração, aliada à pane, despertasse em Lula, senão a virtude, aquele medinho que pode ser bastante pedagógico. Ah, se pode! E assim pensei e não pequei (acho): imaginando que Lula e sua entourage, ao vislumbrarem a Eternidade ao sobrevoarem a terra de Nossa Senhora de Guadalupe, passassem a buscar não o sucesso diabolicamente mundano, e sim a redenção. Que tal?
Ele só pensa... naquilo
Durou pouco, porém, esse meu delírio. Porque, à medida que o tempo passava, foram me chegando mais e mais memes. Ao meu redor, por assim dizer, fui percebendo uma atmosfera de crescente expectativa. Talvez até de euforia. Aquilo poderia acontecer. Tudo poderia mudar. Bastava que o avião caísse e a tragédia se confirmasse. Mas será que mudaria mesmo? Algo me dizia que não. Que haveria um período de catarse coletiva seguido pelas mesmas tragédias de sempre – aquelas para as quais não há pane em avião presidencial que resolva, porque ocorrem diariamente em nossos corações.
Mas eu é que não iria jogar um balde de água fria nas pessoas. Por isso fiquei ali: um olho no aviãozinho e outro nos memes a antecipar o que só posso descrever como uma festa cívica. Geraldo Alckmin no aquecimento. Lula bebendo todo o combustível do avião. Alexandre de Moraes dando 24 horas para o Mossad explicar a pane. Essas coisas, esse humor espontâneo com o sofrimento que nos irmana e que dá graça e cor a um tempo que, de outro modo, seria registrado apenas nos tons de cinza das distopias totalitárias.
Tragicamente em segurança
Até que o avião pousou tragicamente em segurança, como dizia um dos memes. E cada um foi cuidar da sua vida, como se não tivesse pensado, imaginado e desejado que, de uma hora para a outra, pela mão do destino, da gravidade ou do Mossad, fosse restabelecida no país algo que costumamos chamar de justiça. Mas que talvez seja apenas o velho coração humano ansiando pela concretização dos seus sonhos mais perversos.
Fui dormir. E, tolo que sou e não nego, hoje ainda acordei com a esperança microscópica de encontrar estampada nesta Gazeta do Povo a epifania lulista. Nada. Se bem que, a esta altura do campeonato, Lula reconhecer que é humano, falho, frágil e suscetível à Indesejada das Gentes equivaleria mesmo a uma morte. Então faz sentido que, diante da possibilidade de ver abreviada a vida, ele e os seus recorram não à imagem do pó e de tudo o que é minúsculo diante de Deus, e sim aos macabros delírios de grandeza disfarçados de normalidade.