Paulo Freire, esse grande nada da academia brasileira, completaria 99 anos. O que é prenúncio de que teremos um ano de 2021 cheio de homenagens ao Patrono do Analfabetismo Funcional. E, provavelmente, intermináveis discussões sobre a importância da pedagogia do oprimido na formação intelectual, por assim dizer, de toda uma geração.
Um dos ensinamentos seminais de Paulo Freire, para quem não conhece, diz respeito à frase “Eva viu a uva”, que todo mundo deve ter escutado quando aprendeu a ler e a escrever. Pois para Freire não bastava saber ler “Eva viu a uva”. Cabia ao professor ensinar também a posição que Eva ocupa neste contexto social, quem trabalha para produzir a uva e sobretudo quem lucra com esse trabalho.
Assim, veja só, você não só ensina o aluno a ler e a escrever, deixando-o livre para tirar suas próprias conclusões sobre o mundo, como de brinde, ou melhor, cavalo-de-troia, incute no estudante toda uma série de valores políticos, ideológicos e morais, prendendo-o para sempre na religião da mais-valia, o marxismo.
É lindo. “Eva” deixa de ser uma consoante e duas vogais e um nome supostamente feminino (vai saber!) para se tornar uma personagem com consciência social. Uma mulher do povo, talvez até uma sem-terra com a beleza de Patrícia Pillar, cujo nome exprime milhares de anos de opressão do patriarcado.
Eva
Imagino a professora da primeira série, trajando aquele figurino de quem dança em homenagem a Nicolás Maduro, diante de uma sala cheia de crianças ansiosas por chegar logo ao zê. “Eva, ah, Eva”, diz ela, como se evocasse um conhecimento que paira no éter. “A mulher tentada pela serpente e que corrompeu o puro Adão. Condenada a figurar para sempre no imaginário popular como um ser criado a partir da costela masculina, subjugada, portanto, à vontade daquele que lhe emprestou a matéria-prima de que é feita”, continua, para uma plateia de boquiabertinhos.
(A essa altura o Zezinho, com o caderno de caligrafia meio sujo de ranho e um toquinho de lápis entre os dedos, vê Mariazinha ali ao lado, os olhos esbugalhados, numa expressão de quem não está entendendo nada dessa maluquice. Justo ele, que só queria aprender a ler para entender o gibi do Tio Patinhas).
Viu
Aí a professora se depara com o “viu” e começa toda uma cantilena sobre o ato de ver, o ver com a alma, não só com os olhos. Mas não uma alma qualquer. Tem que ser uma alma que não está nem aí para o cacófato (umalma). Uma alma que enxergue com o coração social. Que veja no ato de não-ver do cego, do míope, do hipermetrope e até do vesguinho. (Nesse momento, por motivos óbvios, todo mundo vira a cabeça para o Luizinho, que está olhando em todas as direções ao mesmo tempo, coitado).
Uve
Ao perceber a turma dispersa pelas divagações político-poéticas do verbo, a professora continua a frase até chegar à uva. Ou seria o uva? O uve? A professora começa a duvidar da superioridade política do seu guru Paulo Freire, incapaz de prever um futuro, agora presente, em que as pessoas não consideram uva uma fruta masculina ou feminina, muito pelo contrário. “A uva”, diz ela para os pequenos, “pode ser o que ela quiser. Dependendo, pode ser até trainee do Magazine Luiza. Basta acreditar”.
E se põe a contar como os brancos fascistas há séculos oprimem a pobre uva com os pés a fim de transformá-la em vinho, que por sua vez saciará a sede daqueles mesmos homens que insistem em fazer da Eva gato e sapato. Etcétera e tal.
É quando do fundo da sala Paulinho, o espertão da turma, levanta a mão. Mentalmente a professora calcula se dá ou não ao provocador o direito à palavra. Mais por cansaço do que convicção, ela decide que é melhor deixar o Paulinho falar. E ele, que já conhecia a bobagem do xará marxista (não me pergunte como), não perde a oportunidade de perguntar: “E quem lucra com esse trabalho, fessora?”.
Ela regurgita a pergunta na mente. Pensa no Lenine Luxemburgo, presidente da ONG Livro Ni Mim, que neste exato instante deve estar curtindo uma piscina com os amigos em sua confortável casa à beira mar. Pensa na Ivanka, na Djamila, na Manuela, na Lilia. Em Lula e Dilma, claro. Até no Caetano ela pensa. E, por fim, pensa no companheiro Zanin, que teve R$273 milhões em bens bloqueados pela justiça.
Diante do silêncio, Paulinho, o provocador, repete a pergunta com aquele seu sorriso maroto: “E quem lucra com esse trabalho, fessora? Quem lucra com Paulo Freire, com a pedagogia do oprimido, com essa coisa de ensinar marxismo para a gente?”
Mas, antes que a fessora pudesse responder, toca o sinal para o recreio.
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