O pensamento crítico estimula a vigilância e a fiscalização constantes do erro alheio. Sempre alheio.| Foto: Pixabay
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Tenha pensamento crítico, tenha pensamento crítico. Ou pior: tenha espírito crítico, como bem me lembra um amigo. Era essa a postura que deveríamos adotar se pretendíamos ganhar o mundo e, com alguma sorte, sermos felizes. Só esqueceram de dizer que “o êxito é um impostor”, como bem me diz um amigo, o mesmo. E que a felicidade que o tal do pensamento/espírito crítico nos promete não é exatamente felicidade.

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Estava pensando nisso outro dia, depois de reler as escassas reações ao texto em que falo sobre a necessidade de trocar os improdutivos debates por conversas. E, quando dei por mim, já havia sido transportado para uma sala de aula do saudosíssimo Colégio Madalena Sofia. Onde, sentada sedutoramente na mesa, a linda professora Liuta enfatizava a necessidade de termos espírito crítico. Ou pensamento crítico.

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Boas intenções

A intenção, quero crer, era boa. Liuta não queria que absorvêssemos o mundo como ele nos era dado. Ela queria que filtrássemos o mundo de acordo com o nosso conhecimento e os nossos valores. Além disso, ela falava com uns olhos irresistivelmente azuis e apaixonados. Tanto que eu, aos 14 anos, não resisti. E quase mudei meu nome para Paulo Pensamento Crítico Polzonoff.

No pessoal e no profissional

Até que um dia, muitos e muitos anos depois, me vi diante do analista, maldizendo a pobre professora que, tenho certeza, só queria meu bem. Eu estava em crise. Afinal, tinha feito o que ela e outros mestres me ensinaram (tenha espírito crítico!) e isso só havia me causado problemas, tanto no pessoal quanto no profissional, como diria o Faustão. O analista, como é de praxe, não resolveu nada. Continuei invocando o maligno espírito crítico – e me ferrando. Até que recentemente entendi.

Erro alheio

Entendi que o espírito crítico, transformado primeiro em pensamento e depois em ação, estimula a vigilância e a fiscalização permanentes. Parece legal, né? O problema é que estamos falando da vigilância e da fiscalização do erro alheio. Sempre alheio. Isso nos transforma em hipócritas que ignoram a trave no próprio olho a fim de acusar o cisco no olho alheio (Mateus 7:3-5). E em cínicos que vagam à toa em busca de um homem bom, ainda que imperfeito, no qual não acreditamos.

Erros & errados

E o tempo todo é assim. Na política, nas artes e nas conversas, sem falar no jornalismo, atividade crítica por excelência, estamos o tempo todo falando que Fulano errou, Beltrano errou e Sicrano não deixou por menos e errou também. E você está errando e todo mundo está errando e, se duvidar, até os marcianos estão errando. Erros, erros, erros. Quem invoca o maligno espírito crítico se vê cercado de erros & errados por todos os lados.

Pensamento Reflexivo

Essa tendência à crítica constante, confesso já no título deste texto, destruiu minha vida. Destruiu? Minto. Continua destruindo sempre que abro a guarda e cedo à compulsão de apontar o erro alheio. E por que faço isso? Para a minha própria gratificação. O que, quero crer, acontece com menos frequência depois que abandonei o Pensamento Crítico e passei a adotar o Pensamento Reflexivo (patente pendente), que consiste basicamente em olhar para dentro de si ou num espelho, e reconhecer sua própria imperfeição antes de chamar o outro de canalha. Mesmo que ele seja.

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Experimente!

Experimente agora mesmo, ao ler este texto. Ou melhor, experimente no texto de um autor do qual você discorda visceralmente. Vai lá que eu espero. Mas tem que olhar bem para dentro de si, hein. Mais fundo. Mais, vamos, você consegue! Você é capaz de continuar vendo o erro alheio; mas, se usou o Pensamento Reflexivo de acordo com o manual de instruções, provavelmente agora se sabe não muito melhor e talvez até pior em outros aspectos. Viu? Não doeu.

Efeitos colaterais

Se seu objetivo, contudo, for o tal do êxito e da felicidade (que não é felicidade, você sabe), não posso garantir a eficácia do Pensamento Reflexivo. E devo informar que entre os efeitos colaterais está uma leve melancolia e uma incômoda, mas plenamente suportável, sensação de fracasso. Mas a paz que o Pensamento Reflexivo lhe dá, sobretudo diante da injustiça e da mentira que reinam no mundo, compensa. Ah, se compensa.

Por isso, recomendo: Pensamento Reflexivo. Disponível nas melhores cabeças e principalmente nos maiores corações.

Um abraço do
Paulo

Asteriscos

* Acabei de descobrir agora, agorinha mesmo, neste exato instante que a professora Liuta faleceu e ganhou até obituário aqui na Gazeta do Povo. Que Deus a tenha.

** Sei lá se alguém lê esta carta até o fim, mas não posso deixar de recomendar a leitura de How Dante Can Save Your Life, de Rod Dreher. Infelizmente o livro ainda não está disponível em português. Trata-se de uma jornada pessoal do autor pelo inferno, purgatório e Paraíso da Divina Comédia. Não se deixe enganar pelo título vendedor (olha o espírito crítico aí!); é um daqueles livros que mudam a vida da gente.

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*** E tem mais: de vez em quando a gente precisa simplesmente abandonar o espírito crítico e confiar nas pessoas. Afinal, nem todo mundo quer nos prejudicar e enganar. Essa desconfiança constante acaba com a gente. Tá louco.

[Esta coluna é uma reprodução da carta que chega à caixa postal dos assinantes toda sexta-feira. Se você ainda não se inscreveu, lá em cima, logo depois do primeiro parágrafo, tem um campo para isso].

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