A obra literária mais importante do século XXI não é um romance, um poema, uma peça de teatro nem uma letra de música. A obra literária mais importante do século XXI é um discurso de formatura. Intitulado This is Water [Isto é Água], ele foi escrito por David Foster Wallace e declamado (proferido?) diante dos alunos que se formavam na Kenyon College, em Ohio.
Aliás, o fato de Wallace, autor do calhamaço Graça Infinita, ter escolhido a forma breve e praticamente exaurida dos discursos de formatura já diz muito sobre suas ambições e realizações artísticas. Com um convite desses nas mãos, é provável que qualquer outro escritor reagisse com enfado. Wallace não. Ele impôs para si o desafio de escrever um discurso que realmente dissesse algo de útil e que pudesse ser lido anos, décadas, séculos depois de sua morte.
E conseguiu. This is Water é... magistral do começo ao fim (ao contrário dessa minha frase, reconheço). É como se o escritor tivesse conseguido condensar e, não satisfeito, atualizar toda a filosofia estóica, com generosas porções do cristianismo mais puro, num texto bem-humorado, que se lê em, no máximo, meia hora. Não satisfeito, ele encontra espaço para, no texto, fazer um dos diagnósticos mais precisos do nosso tempo e até prever dramas atualíssimos, como a cultura do cancelamento e as intermináveis e infrutíferas brigas políticas.
Nas próximas semanas, meses e, com sorte, anos pretendo voltar a usar This is Water como referência para falar das nossas atribulações cotidianas neste espaço. Por ora, opto por explorar rapidamente uma das últimas reflexões do discurso, sobre como nossa felicidade (a realização de nossos sonhos) pode dar origem a uma permanente sensação de desconforto que nada tem a ver com o mundo supostamente desajustado em que vivemos.
Tá bem, mas não se irrite
Você é uma pessoa feliz? A não ser que você seja um cínico ou um seguidor dos ensinamentos do grupo de pagode Só Pra Contrariar, são grandes as chances de você responder afirmativamente à pergunta. Talvez você esteja passando por um período atribulado, com pandemia e tal. Mas felicidade, sabemos, é algo que independe do dia. Se você me lê neste momento, é provável que você seja uma pessoa bem-sucedida. Na sua mesa não falta comida. Você tem família e amigos. E, quando olha para o futuro, pode se dar ao luxo de se ver como um simpático velhinho jogando dominó no parque. Felicidade não é só isso, mas isso também é felicidade.
E, no entanto, apesar dessa felicidade óbvia e até um tanto quanto vulgar, é provável que você viva num estado permanente de irritação. Tudo lhe dá raiva. Tudo o deixa indignado. Tudo causa revolta. Em This is Water, escrito no remoto ano de 2005, antes de as redes sociais se tornarem o que são hoje, David Foster Wallace fala da irritação das pessoas no mercado, com a lentidão da fila do caixa, e no trânsito, com motoristas uns agressivos e outros lerdos demais.
Hoje o equivalente seria abrir as redes sociais, ler um comentário qualquer por lá (“adoro ketchup na pizza”) e dele tirar conclusões as mais escabrosas possíveis sobre a pessoa e também sobre o mundo que nos cerca. Um mundo necessariamente errado porque se desvia um milímetro daquilo que você considera o ideal. Afinal, como é possível habitar o mesmo planeta que essas pessoas deploráveis que gostam de ketchup na pizza, não é mesmo?
Ou então, como é possível habitar o mesmo país onde Fulano fala bem de Bolsonaro e Sicrano fala bem de Lula? Onde Fulano sonha com o comunismo e Sicrano com o liberalismo? Onde Fulano diz que sexo é biológico e Sicrano diz que é uma construção social? Onde Fulano ouve Pablo Vittar e Sicrano ouve Bach?
Como somos programados para compreender a realidade a partir do nosso umbigo, acreditamos que todo mundo assume posturas com base nas mesmas informações de que dispomos, com base nas mesmas experiências de vida, com base na mesma formação, com base até no mesmo humor em determinado dia. Daí a irritação, a revolta e a indignação permanentes.
Ketchup na pizza
A mágica é que “basta” escolher o que pensar e o mundo se transforma num lugar digno de sua mais absoluta compaixão. Aqui o verbo “escolher” é importante. Lembre-se de que o texto é, originalmente, um discurso de formatura voltado para alunos de uma faculdade progressista. Wallace enfatiza o papel da educação em dar aos alunos meios para que eles se libertem do pensamento dogmático e possam escolher como e no que pensar.
São escolhas que nos negamos diariamente. Pensamos “no automático”. Criamos associações imediatas às quais atribuímos valores positivos ou negativos. Daí o Bolsonaro genocida, o analista político passador de pano, o Lula ladrão ou salvador da Pátria (ao gosto do freguês), o artista comunista/maconheiro/vagabundo, o mendigo drogado, o capitalista desalmado e o juiz vendido. E, claro, o carioca herege que come pizza com ketchup.
E nos negamos a escolher como e no que pensar por vários motivos. A uns falta mesmo a educação (no sentido de instrução) que lhes permitiria analisar a realidade sem precisar apelar ao instinto. A outros, curiosamente, sobra essa mesma educação, o que os leva a terem uma visão fria, intelectualizada demais dessa mesma realidade. Há quem tenha também pressa, preguiça, frio/calor, sol/chuva, TPM, ressaca pós-derrota do time. Ou que nunca tinha se dado conta de que pensar é uma escolha.
This is Water, apesar de ter sido escrito por um ateu, é de um cristianismo quase militante. Ele propõe que você olhe com generosidade para todo mundo, desde o seu inimigo ou desafeto até aquele colega legalzinho, mas chato, que fica mandando áudio no WhatsApp. Que você entenda que as escolhas que as outras pessoas fazem na vida não têm o objetivo de beneficiá-lo ou prejudicá-lo. Que, apesar de todo esse papo de autoestima e autenticidade, não, você não é o centro do Universo.
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