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O cenário é o mítico Bar Lagoa, no Rio de Janeiro. O ano é 2003. Uma pena que minha memória não me permita nomear todos que estão à mesa conversando animadamente enquanto esperamos ser destratados pelo garçom – a experiência gastrocomportamental responsável pela fama do lugar. Entre salsichas e chopes, o assunto à mesa é Olavo de Carvalho.
Para quem já nasceu e cresceu ouvindo falar de Olavo de Carvalho é difícil expressar a importância dele. Ainda mais nos últimos anos do governo de Fernando Henrique Cardoso e primeiros anos do governo do PT. Naquela época, apesar do espantalho do “neoliberalismo” e do colapso relativamente recente da União Soviética, a mentalidade coletivista era absolutamente hegemônica. Aí apareceu Olavo de Carvalho empunhando uma palavra simples, mas que fez toda a diferença para uma geração: indivíduo.
Era sobre isso que conversávamos naquele dia: a primazia do indivíduo sobre o grupo. Da "alma individual" sobre o "espírito do tempo". Infelizmente, me parecia uma contradição que precisássemos nos reunir e agirmos em grupo para discutirmos justamente a importância do indivíduo. Mas isso não vem ao caso. A vida passou e cada uma das pessoas reunidas naquela mesa foi vivê-la. Cada qual inoculada com essa ideia que hoje pode parecer óbvia, mas sem a qual jamais teríamos o necessário embate entre os que defendem a liberdade e os que promovem a tirania.
Fosso
Muita coisa aconteceu desde aquele encontro de olavetes, proto-olaves e futuros ex-olavetes no Bar Lagoa. Eu, por exemplo, depois de ver um mendigo esvaziando os intestinos em pleno Aterro do Flamengo, virei esquerdista por uma semana. Reneguei o indivíduo e, por consequência, o que havia aprendido com Olavo de Carvalho. Recobrei a consciência rapidinho, mas o estrago estava feito: nunca mais me relacionei de forma pacífica com aquele grupo. Pior: nunca mais me relacionei de forma pacífica com o indivíduo um tanto complicado demais que sou.
Com a ascensão de Olavo de Carvalho ao estrelato intelectual, por assim dizer, restou-me a tarefa esdrúxula de lidar com essa influência sem me deixar contaminar pelo que via como uma caricatura agridoce. Por falar em caricatura, sabe o que é mais curioso? Ontem mesmo, num texto que ainda há de ser publicado, mencionei rapidamente o fato de os homens interessantes, isto é, os homens esquisitos e cheios de idiossincrasias, estarem desaparecendo. Olavo de Carvalho foi um desses homens. E agora também ele desaparece.
A tudo eu observava com uma sensação de orfandade – algo que já explorei num texto recente. Via Olavo de Carvalho na TV, rádio e nas redes sociais e ficava idealizando uma discrição que não combinava com a personalidade dele. Ao me aproximar primeiro do libertarianismo e, depois, do estoicismo, minhas diferenças em relação ao homem (mas não necessariamente à obra) aumentaram. Mas não foram poucas as vezes em que, em silêncio e um tanto quanto constrangido, tentei transpor esse fosso. Sem sucesso.
Parêntese e fim do texto
(Um parêntese necessário aqui. Escrevo este texto parando de vez em quando para dar uma volta pela casa [sou peripatético] e espiar as redes sociais. Entre as muitas mensagens de gratidão, me deparo aqui e ali com manifestações de ódio. Os autores são os “humanistas” de sempre. Aqueles que, sempre em grupo [até porque lhes falta a noção complexa de individualidade], transformam a morte de Olavo de Carvalho num ritual bárbaro de alegria infernal.
Diante desse espetáculo, seria muito fácil ficar apenas indignado, revoltado ou, vá lá, deprimido. Mas prefiro pensar que, mesmo morto, Olavo de Carvalho conseguiu o improvável: fazer com que ateus, com sua perversidade diabólica, fizessem referência à mortalha da transcendência que um dia há de nos envolver a todos.
Também prefiro pensar que os esquerdistas que dançam sobre o caixão de Olavo de Carvalho estão dando uma grande lição à maioria sensata que ainda se identifica com princípios cristãos: tripudiar sobre a morte do adversário [ou inimigo] é coisa de canalha. Que não repitamos essa atitude mais do que reprovável quando nossos adversários [ou inimigos] adentrarem a embarcação de Caronte. Agora fecho o parêntese para concluir o texto).
Numa época em que não só os homens como também as ideias se tornaram tediosamente homogêneas, ainda que se disfarcem de diversidade e até de antagonismo, as idiossincrasias e as baforadas de cigarro de Olavo de Carvalho farão falta. Assim como farão falta o olhar sempre muito original sobre a realidade e até o humor – embora seja um humor um tanto quanto raivoso para meu gosto.
E fará falta sobretudo a defesa do indivíduo – do presidente da República ao mendigo da esquina – como um ente autônomo e digno de respeito, admiração e, por que não?, de espanto e compaixão. Na exata medida em que ele se rebela contra o pensamento de grupo.