Caro leitor,
Fiquei sabendo pela televisão, feito um neandertal, que a pira olímpica dos Jogos de Paris 2024 não usa fogo. Isso mesmo: não usa fogo. Em nome da sustentabilidade, a organização das Olimpíadas optou por manter a tradicional chama que vem lá da Grécia confinada a um lampiãozinho. Ao lado dela, a pira olímpica grandona, a que atrai turistas e parece impulsionar um balão, é na verdade uma ilusão politicamente correta criada com vapor d’água e LED.
Mais do que o mero espanto, a notícia do fogo-que-não-é-fogo me lembrou de uma gravura do artista espanhol Francisco Goya, intitulada “O Sono da Razão Gera Monstros”. Porque é disso que se tratam essa e todas as outras iniciativas sustentáveis das Olimpíadas, incluindo aí a desastrosa alimentação semivegana oferecida aos atletas: uma monstruosidade ridícula e perigosa, causada pelo torpor da razão.
Para além da discussão apaixonada sobre o gênero de alguns atletas ou sobre a blasfêmia da cerimônia de abertura, o fogo falso dos Jogos Olímpicos é sintomático de um tempo em que tudo, da política à fé, é falso. Monstruosamente falso. Tudo é feito para impressionar, quando não para a autoexaltação. Tudo é sacrificado no altar do eu, eu, eu, eu. Tudo vem recoberto por uma camada às vezes fina, às vezes grossa, das muitas mentiras que contamos até para nós mesmos, sempre no afã de agradar alguém.
Pablo Marçal
Falava eu, porém, do torpor da razão e dos monstros criados por esse soninho atribulado. Trazendo a discussão para o nosso quintal, o fenômeno do fogo falso da pira olímpica pode ser observado na reação entusiasmada da direita-Coringa a Pablo Marçal. Que, no debate com os candidatos à prefeitura de São Paulo, realizado no quinta (08), deu seu showzinho, cantando uma sedutora canção de ninar para a razão cansada do eleitor que não suporta mais ser feito de palhaço com as lorotas “do lado de lá”.
Marçal insinuou que Guilherme Boulos é usuário de cocaína. Chamou Tabata Amaral de adolescente. Usou e abusou de palavrões e expressou toda a sua rebeldia usando um boné estampado com a ególatra letra “M”. Por fim, seduziu uma plateia emocionalmente vulnerável, para a qual os fins (a derrota do comunismo/petismo/esquerdismo) continuam a justificar os meios (a viabilidade eleitoral de um pulha carismático).
Assim, dormindo no berço esplêndido do dever terceirizado, observamos a razão nacional parir esse gremlin. Mais um gremlin, aliás, na nossa história abundante em monstrinhos e monstrões, cada qual com sua promessa de acabar ora com a miséria, ora com o comunismo, ora com a fome, ora com a insegurança. Promessas feitas de acordo com o tom do ronco da razão. Que nesse sono profundo, induzido por delírios de grandeza, insiste em confundir as trevas e desertos dos pesadelos com as pradarias floridas dos mais coloridos sonhos infantis.
A besta
Por falar em pesadelo, não poderia terminar a carta de hoje sem mencionar a última crueldade de Alexandre de Moraes. Que insiste em perverter a noção de justiça, reduzindo-a à maldade motivada pela vingança e por uma ideia muito muito muito muito mal calibrada de democracia e autoimportância.
Desta vez, Moraes se recusou a permitir que uma mulher, uma das presas pelo 8/1, tirasse a tornozeleira eletrônica para realizar exames de imagem. Decisão mesquinha, coisa de gente pequena mesmo, mas que se torna crueldade quando se sabe que a mulher tem câncer e que os exames de imagem são cruciais para o tratamento dela.
Moraes cuja razão também dorme profundamente, embalada por histórias de uma democracia muito frágil. Tão frágil que, para não ser engolida pelo lobo mau fascista, implora pela ação do príncipe-herói: um monstrengo totalitário que chega montado numa besta híbrida que tem a cabeça da ignorância e o corpo da vingança sórdida.
Fico por aqui antes que acabe falando alguma bobagem.
Abraço do
Paulo.
[Esta coluna é uma reprodução da carta que chega à caixa postal dos assinantes toda sexta-feira. Se você ainda não se inscreveu, lá em cima, logo depois do primeiro parágrafo, tem um campo para isso].
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