Praticamente todos os dias sou agraciado com comentários não lá muito elegantes sobre o que escrevo. É comum também que essas críticas ultrapassem os limites da minha subliteratura cotidiana e pretendam atingir meu caráter. Normal. É assim há vinte anos – e não tenho nenhuma expectativa de que isso mude no futuro próximo.
O que talvez surpreenda aqueles que gastam suas energias na esperança de me irritar é que admiro todos os comentários, especialmente esses cheios da volúpia insultuosa própria das nossas plataformas virtuais. Até porque eles sempre me levam a questionar essa ou aquela ideia imperfeitamente expressa. Mais do que isso, comentários maldosos são um belo termômetro do que se passa na alma dos corajosos-de-pseudônimo. Eu seria um idiota se não percebesse o valor disso.
Por coincidência, no momento leio uma preciosidade: You Are What You Love: the Spiritual Power of Habit [Você é o que ama: o poder espiritual do hábito], de James K. A. Smith. E, já nas primeiras páginas, me deparo com uma constatação óbvia que precisa ser repetida e amplificada para que chegue àqueles que, em meio à balbúrdia típica do nosso tempo, estão distraídos demais com seus umbigos para ouvir.
Smith argumenta, logo no começo do livro, que há um motivo para Jesus, em João 1:38, perguntar aos seus discípulos: “O que vocês querem?” (Há versões da Bíblia que usam “O que buscais?”) e não, como propõem as redes sociais hoje em dia, “o que vocês não querem?”. Afinal, é o nosso desejo de construir o que nos leva a agir de determinada forma. Nossas ambições (materiais, emocionais, espirituais) se baseiam naquilo que amamos, não no que rejeitamos.
O que você quer?
E o que, afinal, queremos com um comentário maldoso? Ou com uma campanha de cancelamento? Ou até mesmo com as críticas que escrevo aqui e que um bom amigo considera um abominável “festival de acidez”?
A graça da pergunta é que as intenções alheias são inalcançáveis. Só nós mesmos temos acesso àquilo que nos leva a acordar todos os dias. Esse é um dos segredos mais bem guardados do indivíduo e, para acessá-lo, é preciso refletir muito e, às vezes, contar com a ajuda de um bom terapeuta ou orientador espiritual.
Ou seja, dá trabalho. Um trabalho ao qual, compreensivelmente, a maioria não está disposta. Poucos processos de autoconhecimento são mais dolorosos do que buscar a razão que o leva de verdade a sair da cama. Que o leva a querer mudar o mundo. Ou, para usar a terminologia marxista, que o leva a querer transformar a realidade.
Por algum motivo que me escapa, é mais fácil e, por que não?, mais divertido ressaltar aquilo que nos causa desgosto, quando não ojeriza, repulsa, ódio mesmo. Mas perceba como ceder a isso é perverso. É como se deparar com o próprio Cristo todas as manhãs, ouvi-Lo sussurrar “o que você quer?” em seu ouvido e responder agressivamente: “quero o fim da gordofobia!” ou “fora, Bolsonaro” ou “cala a boca, Polzonoff!”.
Contraintuitivo
Talvez isso aconteça porque é contraintuitivo supor que nossos inimigos ideológicos têm, no fundo, bem lá no fundo mesmo, algo de bom a motivar seus feitos diabólicos. É mais fácil acreditar que um corrupto, por exemplo, faz o que faz por vontade de beber Romaneé Conti no café da manhã e acender um Cohiba com nota de R$200. Muito mais difícil é supor que, na origem do monstrengo, a centelha tenha sido outra.
Há uma cena muito boa sobre isso nos minutos finais de “Manhattan”, uma das obras-primas de Woody Allen. Em certo momento, Isaac, o protagonista, está refletindo sobre “coisas pelas quais vale a pena viver” – uma versão secularíssima da pergunta de Cristo. Ele cita Groucho Marx, Willie Mays, o segundo movimento da Sinfonia No 41, de Mozart, a versão de Louis Armstrong para “Potato Head Blues”, filmes suecos, “A Educação Sentimental”, de Flaubert, Marlon Brando, Frank Sinatra, as maçãs e peras de Cézanne, os caranguejos servidos no restaurante Sam Wo. E, por fim, cita o rosto de Tracy, a menina por quem está apaixonado.
Acho estranho imaginar que alguém, fazendo a mesma reflexão sincera, possa responder que vale a pena viver por coisas como “acabar com a transfobia” ou “derrubar uma estátua” ou “instaurar a ditadura do proletariado” ou “aceitar aqui um suborninho para comprar uma Ferrari” ou ainda “xingar aquele idiota que escreve aquelas bobagens na Internet”.
Por isso pode xingar, xingue à vontade. Afinal, sei que, a despeito de suas palavras mal educadas, você provavelmente não é uma má pessoa. Você só está (como estamos todos) um tanto quanto perdido, tentando descobrir o que ama.
[Se você gostou deste texto, mas gostou muito mesmo, considere divulgá-lo em suas redes sociais. Agora, se você não gostou, se odiou com toda a força do seu ser, considere também. Obrigado.]
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