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Foi um milagrezinho desses para os quais a gente não dá muita bola. Desses que acontecem todos os dias, bem debaixo do nosso nariz, mas que desprezamos porque os misturamos ao balaio da normalidade. Nem sempre o milagre vem acompanhado pelo estourar de fogos de artifício celestiais. Ou da cura de um leproso. Às vezes o milagre se manifesta no simples gesto de abrir um livro.
Aliás, esses milagrezinhos à toa acontecem sempre que um livro encontra seu leitor ideal. E, acredite, todo livro (e até mesmo estas minhas crônicas diárias) tem seu leitor ideal. Que é raro. Que é especial. A única comparação que me vem à mente a esta hora é a de um náufrago jogando garrafas ao mar. O milagre está não apenas em encontrar uma garrafa com uma mensagem dentro, mas sobretudo em se deixar tocar por essa mensagem.
Mas, voltando à vaca fria e cara, dia desses peguei o livro virgem na estante e comecei a lê-lo. Era uma coletânea de crônicas de Gustavo Corção. Já no primeiro texto o milagre se fez presente. Num texto escrito há 60 anos, Corção fala da importância de se abandonar os livros e as lições para se admirar os pássaros azuis que pousam em nossos quintais. Não, a ironia não me escapa. Ah, se Corção pudesse imaginar no que se transformou o pássaro azul!
De repente, Corção começa a falar sobre inflação, instabilidade econômica, essas coisas. Apesar de ser estranho ver o autor de “Lições de Abismo” falando de economia, abro a garrafa suja de areia. A princípio, o texto atiça tudo aquilo que sei sobre o assunto. Não que seja muita coisa, mas é o suficiente. Num átimo, me recordo de tudo o que li em Mises e Roberto Campos e vários outros autores liberais, libertários e até (argh) keynesianos.
Nunca, porém, tinha lido uma interpretação espiritual de um fenômeno econômico sobre o qual nós, indivíduos, não temos controle algum. E é justamente isso o que Corção nos oferece: uma interpretação espiritual da inflação. Diz ele que a instabilidade econômica resultante da volatilidade dos preços causa no homem um estado de ansiedade permanente. Essa ansiedade o faz ignorar a realidade em que vive para se concentrar em tudo o que acha que poderia fazer para combater porcentagens abstratas nas capas dos jornais.
Aí o dinheiro, que era para ser apenas um meio de troca, se transforma no próprio sentido da vida. Debilmente, acreditamos que o acúmulo de dinheiro é necessário para nos protegermos da inflação e do cenário de instabilidade que nos cerca. E é nessa crença que muitas vezes sacrificamos nossa alma a fim de alcançarmos uma vida melhor que, por mais zeros à direita que se acumulem em nossa conta bancária, nunca se torna realmente melhor.
“A instabilidade da moeda, como causa material, contribuir para formar o ambiente de instabilidade moral, o clima do jogo, do lucro fácil, da ‘vida melhor’, do golpe. (...) E assim fica patente que o dinamismo produzido pela instabilidade da moeda é uma febre, um falso progresso que abala as instituições e corrompe as almas”, escreve Corção. Ele conclui o texto fazendo referência ao "culto ao dinheiro" que hoje nos parece normal e até admirável.
A reflexão é boa, difícil e necessária. Mas infelizmente não nos oferece saída. Talvez porque não haja mesmo saída. Como disse anteriormente, somos impotentes diante das políticas monetárias, muitas das quais elaboradas antes mesmo de nascermos. Só nos resta, portanto, reagir da melhor forma a essa febre. E me parece que ter consciência dela já é um bom começo.