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Os amigos me pedem, imploram para que eu leia João Moreira Salles. Um deles (que, mesmo não sendo um amigo de verdade, e sim um recurso retórico, conhece meus hábitos de ancião), me liga às 21h30 da madrugada para discutir detidamente o texto mais recente do “autor obrigatório”. Digo que não li ainda, que estava pegando no sono, e sou repreendido. O Brasil derretendo e você aí, dormindo! Você tem que ler, cara! Tem que ler para entender esse necrogoverno.
Como o amigo é querido e, no mais, sou grato a Moreira Salles por ter me apresentado a Alan Jacobs, leio “A morte e a morte – Jair Bolsonaro entre o gozo e o tédio”. Leio uma vez e acho que me enganei de texto. Leio de novo. E uma última vez. Toca o telefone e é o amigo, que já começa me colocando contra a parede. “Não é um dos melhores textos do mundo, da galáxia, do Universo?!”, pergunta ele. Tento responder educadamente que não, mas ele me atropela com seu desespero antigoverno.
Eu, que passei alguns anos da minha vida bebendo do colostro libertário, não nutro estima por governo nenhum. Mas vejo com especial desconfiança aqueles que, como meu amigo, se desesperam não diante do Estado como um todo, com suas instituições corrompidas, carcomidas, preguiçosas e falhas, e sim com uma versão específica do Estado: essa que está aí.
A premissa de João Moreira Salles que tanto empolgou meu amigo é a de que vivemos sob um governo pautado pela necrofilia. Jair Bolsonaro, seus ministros, os deputados que o apoiam, aqueles napoleõezinhos que acampam em frente ao Congresso e até a tiazinha do WhatsApp que não entende direito a mensagem, mas a faz circular mesmo assim porque tem especial predileção pelo verde e amarelo, todos seriam adoradores da morte. E estariam numa espécie de “conluio inconsciente” para exterminar a população brasileira, sobretudo os menos favorecidos.
Para levar adiante esse projeto de extermínio, essa irmandade macabra, tendo à frente um Bolsonaro com poderes de fazer inveja a um rei absolutista, estaria usando o vírus chinês. Sendo mais específico, a “negligência” e a “indiferença” para com a maldita partícula. Segundo Moreira Salles, só não vê quem não quer: esse caso de amor entre Bolsonaro e a morte está presente em cada gesto, fala e silêncio do presidente. Está no resignado “E daí?”, no estoico “É o destino de cada um” e até no otimista “Pode ter fé e acreditar que a gente vai mudar o Brasil”.
Sentimentalismo kitsch
“E era assim que estávamos, pelo menos até meados de junho: nenhuma fala sentida à nação; nenhum gesto de solidariedade com as vítimas; nenhuma cerimônia em memória dos mortos”, escreve Moreira Salles no estilo grave e soturno de quem ainda acha que um ponto e vírgula é elegante. Interessante notar que, ao cobrar de Bolsonaro uma postura sentimental, ele recorre à mesma retórica kitsch que levou os formadores de opinião ingleses a questionarem a rainha da Inglaterra por que ela não chorou a morte da princesa Diana.
Aí, antes de começar a usar aspas e mais aspas para conferir “estofo teórico” a uma crítica estética que dá muitas piruetas na esperança de se fazer lida como crítica política e até psicossocial, Moreira Salles comete um dos parágrafos mais constrangedores do já muito constrangedor debate de ideias contemporâneo.
Diz ele, dando uma de sommelier de luto, que, “por outro lado, não haveria dificuldade em encontrar fotografias de Bolsonaro sorrindo, ou mesmo dando risada, nesses meses da nossa agonia. O luto lhe é estranho. Publicamente, sua reação ao sofrimento alheio assume apenas duas formas: júbilo ou indiferença. É preciso reparar nisso para compreendê-lo”.
A partir daí, um Moreira Salles nada inspirado parece ter pegado a pena emprestada de Márcia Tiburi para atestar que “a morte o excita”, “a ciência o ofende”. Ele ainda chama o grupo MBL e Janaína Paschoal de “direita mais extremada”. E seu cinzel para lá de descalibrado é digno de frases como “A ameaça e o perigo não são interessantes, são apenas assustadores” e “Bolsonaristas tratam o idioma como tratam o meio ambiente, o que não é fortuito”.
Num parágrafo emblemático de um texto interminável, eu diria que Moreira Salles reflete (embora o verbo seja um tanto quanto exagerado): “Bolsonaro sempre sorri quando transforma as mãos em arma. Aquelas pistolas imaginárias, símbolo de sua campanha, estão ali para mostrar o que lhe dá prazer. A violência é o componente essencial. O que provoca regozijo é o corpo baleado no chão, o traficante executado, o homossexual espancado, a moça trans agredida, o esquerdista desacordado, o indígena ferido”.
Calma. O parágrafo continua com uma das conclusões que vai fazê-lo querer arrancar os próprios olhos. Mas preciso interromper sua leitura neste momento para lhe dar a oportunidade de respirar e analisar com um pouco de cuidado as palavras acima. Então quer dizer que a estética da arminha com as mãos combinada ao sorriso que está onipresente na cara feia de todos os políticos é sinal de que Jair Bolsonaro é um monstro, um tirano desalmado que quer mandar traficantes, homossexuais, a “moça trans”, esquerdistas e indígenas para um campo de concentração construído com trabalho infantil na Amazônia devastada?
Arrancando os olhos
Prossegue o autor deste que meu amigo considera o texto obrigatório sobre Jair Bolsonaro, seus apoiadores e principalmente a massa que está mais preocupada em trabalhar do que em picuinhas políticas e exegeses histéricas de um fascismo imaginário: “Já as vítimas da pandemia morrem sem espetáculo, numa agonia que não é pública. Sendo invisíveis, suscitam no presidente apenas desinteresse, enfado, ‘o puro tédio da morte’, como escreveu Nelson Rodrigues sobre a reação de alguns ao horror da gripe espanhola”.
Como naquele famoso meme, tenho vontade de arrancar meus olhos e os jogar longe. Quer dizer, então, que a tragédia está na ausência de sinais evidentes de tragédia? Que se houvesse corpos empilhados nas esquinas e se a morte de cada uma das pessoas fosse ruidosa todos estaríamos virtuosamente trancados em casa, indo à janela só de vez em quando para bater panelas? É impressão minha ou o autor acaba de demonstrar todo o seu apreço à morte espetaculosa que possa vir a gerar dividendo políticos à ala ideológica de sua (dele) preferência?
O texto continua com insinuações de que vivemos numa versão tropical daquela Berlim de 1933, com referência à destruição da Amazônia, transformada no “canteiro de obra onde trabalham as turmas bolsonaristas de demolição” e referências à “crise da democracia”. Donald Trump, como não poderia deixar de ser, faz uma ponta como “encarnação do mal”. Tudo para culminar numa conclusão estarrecedora: a culpa por tudo isso é do povo que elegeu, ao que parece, o próprio Anticristo.
Com vocês, ladies and gentlemen, diretamente do alto de sua torre de marfim, cercado pela casta dos muito cultos, perspicazes, solidários e nada violentos, o senhor João Moreira Salles: “Bolsonaro não é diferente do país que o elegeu. Não todo o Brasil, nem mesmo a maioria do Brasil (uma esperança), mas um pedaço significativo do Brasil é como Bolsonaro. Violento, racista, misógino, homofóbico, inculto, indiferente. Perverso”.
Ouso discordar
O amigo e o sr. João Moreira Salles que me perdoem, mas ouso discordar. A maioria das pessoas que conheço, e entre elas estão muitos dos 57 milhões que votaram em Bolsonaro, não é violenta, racista, misógina, homofóbica, inculta ou indiferente. Muito menos perversa.
É gente que acorda cedo, trabalha, cuida da família, às vezes perde o sono por causa de contas atrasadas e bebe sua cervejinha no fim de semana. É gente que tenta fazer o seu melhor, que erra e acerta, tropeça e levanta. É gente que chora a morte dos entes queridos, mas que não pode se dar ao luxo de se afogar no luto eterno. É gente que não vê Bolsonaro (ou Temer, Dilma, Lula, FHC, Itamar, Collor, etc.) como um timoneiro a guiá-los a um futuro perfeito nem como um ultravilão de gibi cujo objetivo é exterminar os fracos e oprimidos.
É, sobretudo, gente que não aguenta mais ouvir os esclarecidos & iluminados os insultando e os condenando ao esgoto da história. Como se não tivessem sido justamente esses esclarecidos & iluminados, com seu sentimentalismo e consequencialismo, os corresponsáveis pela morte de milhões de pessoas no século XX.
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