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Show de um tal de Alok no Rio de Janeiro. Pergunto ao jovem amigo Omar Godoy se é funkeiro ou coisa assim. “Não, é músico erudito”, me responde o malcriado que, por sinal, está de aniversário hoje (30). Parabéns pra você, amigo! O fato é que nas redes sociais circulam várias imagens de pessoas comuns que foram ao show menos pela “música” e mais pela discutível diversão de roubar os celulares de outras pessoas comuns.
É como se fosse um joguinho. Uma aventura. Uma perversidade distraída. Uma maldadezinha à toa. Que, no entanto, é a maldade que mais assusta, porque se tornou vulgar e popular, quando não admirável. E que já deixou o gueto moral outrora habitado por marginais de todos os tipos ou por miseráveis usuários de drogas que não têm nada a perder para alcançar o estudante e o trabalhador modesto que rouba por roubar. Mais pela emoção do que pelo valor ou utilidade do objeto roubado.
Por isso é que, aqui, optei por chamar os ladrões de “pessoas comuns”. É gente pobre, mas não miserável. Talvez sejam até de classe média e, para os padrões do IBGE do Pochmann, não me surpreenderei se houver entre os neotrombadinhas até muitos jovens de classe média alta. Gente comum que não rouba para viver. Muito menos para ter o que pôr na mesa. Não, essa crise aí é ética, e não econômica. É gente que está ali no meio e que percebe, no caos do espetáculo, a oportunidade. Perdeu, perdeu.
Sétimo Mandamento
São, repito, pessoas comuns, insuportavelmente comuns, tipo eu e você, mas para as quais o sétimo mandamento não significa absolutamente mais nada. Aliás, é crível que a maioria sequer saiba de qual mandamento estou falando. E aqui talvez nos caiba uma conclusão triste. Falhamos em transmitir a essas pessoas a tradição da honestidade. Da honra que, pensando bem, hoje em dia sobrevive apenas em narrativas fantásticas, aquelas com orcs, dragões e magos. Como se a honra fosse um “superpoder” inexistente neste nosso mundo muitíssimo real. De qualquer forma, é preciso reconhecer mais uma vez: falhamos.
Mas não sejamos tão cruéis com nós mesmos. Afinal, é de fato difícil transmitir a tradição da honestidade e da honra num país onde os desonestos e os desonrados ocupam os cargos de maior autoridade. Que o digam o presidente da República, a grande maioria dos parlamentares, os ministros do STF, os artistas de sucesso e grandes empresários dispostos a qualquer maracutaia para agradar os acionistas.
É assim que, destituídas da noção religiosa do certo e do errado, da virtude e do pecado, essas pessoas comuns se entregam à vontade. Ao impulso. Ao instinto(?). Ao prazer da transgressão. São, portanto, pessoas escravizadas pela ditadura do eu-quero-eu-posso-eu-faço – e ninguém tem nada a ver com isso. Tudo porque a elas falta a noção ética muito básica de que aquilo que pertence ao outro não me pertence. De celular a coração transplantado - acharam que eu perderia a oportunidade, é?
Transgressão impune
Outra coisa que falta a essas pessoas que insisto em chamar de comuns, assustadoramente comuns, para diferenciá-las dos bandidos profissionais: a noção de consequência. E aqui não me refiro apenas à consequência penal. Estou pensando é no mais severo dos carcereiros: a consciência. Aquela culpa que não nos deixa dormir à noite depois de um herro. Quanto mais de um crime. Uma culpa que foi abafada por décadas e décadas de justificativas freudianas e permissividades foucaultianas. Deu no que deu.
Não pensam, essas pessoas comuns, revoltantemente comuns e envolvidas na aventura perversa ao som do bate-estaca alokense, que o mal da transgressão impune pode ser muito maior do que o valor do smartphone surrupiado do “otário”. Vidas de outras pessoas igualmente comuns são realmente afetadas pelo furto de um aparelho que às vezes contém sonhos e lembranças – nem todos salvos em alguma nuvem por aí.
Modéstia
Mas não poderia encerrar este texto sem falar sobre ela que, ao lado da impunidade, talvez seja a maior responsável pela pandemia de roubos e furtos não só de celulares, e sim de todo tipo de artigo supérfluo ou de luxo: a modéstia. Ou melhor, a falta de modéstia. Para você ter uma ideia, a publicidade destruiu a noção de modéstia a tal ponto que hoje ela só é mencionada no seu negativo: a falsa modéstia.
Hoje em dia parece que o homem só existe na medida em que pode exibir o que possui. Desde bens como relógios, carros e... celulares. Até diplomas na parede que atestam: estamos diante de um homem inteligente. Talvez desonesto, desonrado e, aqui eli, dado a maquiavelices. Mas inteligente. Está ali o carimbo do MEC para provar.
A consequência da extinção, em todas as camadas sociais, do homem honesto, honrado e sobretudo modesto permitiu a proliferação desse predador que também age provocando arrastões e saques e praticando o furto tradicional, furto moleque, furto de várzea. Estou falando do ostentador, antes conhecido como imodesto: esse ser famélico que se alimenta de tudo o que a publicidade lhe diz que é um sinal de felicidade. Inclusive do celular alheio, sempre muito mais bonito e desejável do que o nosso.