Já no sábado pela manhãzinha toca o telefone. É um amigo perguntando se vou ou não escrever sobre o que ele chama de “os presos políticos do Alê”. Finjo desconhecer o assunto, mas ele não compra a troça. O silêncio se demora entre nós e sinto que lhe devo uma resposta ali, naquele momento.
— Não sei. Vou pensar — digo.
E é verdade, vou mesmo. Porque em outra época, numa época assim mais preto-no-branco, que coincide com uma época em que eu tinha mais cabelos e menos quilos, eu estufaria o peito, fecharia os olhos como se invocasse a Inspiração e, sem hesitar, martelaria duas mil palavras sobre o assunto.
Mas se há alguma vantagem em perder cabelos e ganhar quilos é que, ao menos em teoria, você se torna imune a esse tipo de arroubo. Assim, tomo o café-da-manhã tranquilamente, à espera do estrondo da campainha. Porque sei que ela vai tocar. Ela sempre toca nessas horas. Ó lá, tá ouvindo?
Vou à porta e os recebo. Eles são irresponsáveis e não usam máscaras. E são mal-educados. E não me dão nem a cortesia de um anti-higiênico cumprimento à moda antiga (circa fevereiro de 2020). Vão logo entrando e se aconchegando no sofá.
O de terno vermelho, todo afobado, vai logo defendendo seu argumento:
— Você tem que escrever sobre os presos políticos! É sua obrigação. Como jornalista. Como cidadão. Como defensor da liberdade. Como...
— E se indispor com todo mundo?! — interrompe o de terno branco. — Com os raros amigos que ainda não o xingam? Com os colegas de trabalho? Com a esquerda moderada que ainda lhe dá alguma chance? Com a direita hidrófoba que não aceitará nada menos do que um libelo com cem mil pontos de exclamação? De-jei-to-ne-nhum! — diz.
— Mas, só por curiosidade — começa o de terno vermelho no seu tom de voz mais sedutor, como convém. — Se você fosse escrever sobre os presos políticos, o que você escreveria? Deve haver um modo de defender o que você entende como justiça sem ser execrado, não? Tenho certeza de que você consegue — diz, preparando ardilosamente a armadilha da vaidade.
Sem que eu tenha tempo de responder a ele que, veja só, se eu fosse escrever sobre o assunto, provavelmente diria que a situação é constrangedoramente autoritária, que a Constituição e suas garantias individuais foram para o beleléu, que é impossível que ninguém perceba que não há virtude alguma nessas prisões e que, caramba, o Brasil me obriga a defender até os loucos, o de terno branco se levanta indignado e começa a cantarolar e tocar a sua lira de ouro. Reconheço a música.
— Eu não sou besta pra tirar onda de herói, sou vacinado, eu sou caubói, caubói fora da lei. Durango Kig só existe nos gibis e quem quiser que fique aqui, entrar pra história é com vocês — canta ele com seu timbre... angelical.
E o recado está mais do que entendido.
— Não é questão de bancar o herói ou entrar para a história — retruca o de terno vermelho. — É uma questão de fazer o certo. De defender com veemência seus pontos de vista e, mais do que isso, de fazer sua argumentação chegar ao ouvido você-sabe-de-quem. É uma questão de acreditar que você, como formador de opinião, tem o poder de transformar a realidade...
Eu e o de terno branco reviramos os olhinhos ao mesmo tempo e caímos na gargalhada.
— É, acho que fui longe demais — reconhece o de terno vermelho. E fazendo um muxoxo: — Pelo jeito você já tomou a decisão e não vai escrever sobre os loucos que foram presos. Uma pena. Você poderia falar justamente isto: que a política se transformou num grande palco para loucos. Que ela sempre foi assim, mas hoje está tudo mais evidente. Mas, veja bem, a loucura da obsessão política não torna ninguém um criminoso. Pode torná-lo um pária, alguém digno de riso e até de pena. Ora, ninguém em sã consciência leva esses napoleõezinhos a sério! Por que não deixá-los, então, com suas espadinhas de brinquedo e suas bravatas sem sintaxe?
— Poderia falar. Mas não vai — intervém novamente o de terno branco. — Porque não há como convencer as pessoas cegas pela ideologia da evidente imoralidade disso tudo. Elas vão dizer que o louco fez isso e a louca fez aquilo. E que tudo é muito grave. Democracia para cá, fascismo para lá. Bolsominion, petista, isentão. Vão dizer que está passando o pano. Essa coisa toda. E, depois de tudo dito e posto, irão cada qual para sua casinha com a mesma certeza que tinham antes: a de que estavam, estão e estarão sempre com a razão.
Diante desse argumento fatídico, encerro a questão: não escreverei sobre a prisão do jornalista com nome de personagem rodrigueano nem sobre a mocinha cujas ideias, se ela as tem, sinceramente desconheço. Peço desculpas ao de terno vermelho, agradeço ao de terno branco e trato de aproveitar o que me resta do dia.
E vou dormir, não sem antes constatar que o anjo pode ter até ganhado o debate, mas, no final das contas, foi o demônio quem ganhou o texto.
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