Houve um tempo em que o ritual era mais consistente. No último dia do ano, eu me sentava e escrevia uma lista de planos para o ano vindouro. Tinha de tudo: ler x livros, escrever y textos, me exercitar, comer melhor, ir mais à igreja. Nos anos de desemprego eu incluía, logicamente, a busca por um emprego. Nos anos de solteirice escrevia, negritava, sublinhava e destacava em corres berrantes: arranjar namorada.
Nos últimos anos, contudo, o ritual perdeu a solenidade e as minúcias, e foi substituído por objetivos mais etéreos e elevados. Sabendo que Deus sempre riu das minhas pretensões de querer controlar a vida, abandonei os planos práticos e materialistas, preferindo me apegar a princípios éticos e morais.
Foi assim que no último dia de 2021, no pequeno intervalo entre o fim do expediente e a abertura da primeira garrafa de espumante, me sentei por trinta segundos na minha cadeira de balanço para desenhar um objetivo que se resume a uma palavra: confiança. Confesso que, num arroubo pré-etílico, cogitei até batizar a coisa toda de Projeto Príncipe Michkin. Mas acho que ainda é cedo demais para confiar que não me acusarão de ser pretensioso por causa de uma bobagem dessas.
Quatro dias ano adentro, contudo, e já noto quão alto é este meu Everest. Confiar deixou de ser algo natural; deixou de ser uma característica inata do ser humano. Deixou de uma virtude admirável. Ao contrário, o ato de confiar se transformou numa excentricidade tão ridícula quanto usar gravata-borboleta ou se sentar numa cadeira de balanço para pensar. Pior: vivemos num mundo que estimula a desconfiança o tempo todo.
Por isso é que vivemos com um medo permanente de todos os que nos cercam, dos políticos aos cientistas, passando pelos acionistas da indústria farmacêutica; do verdureiro ao porteiro, passando pelo motorista do Uber; e, nos casos mais graves, do melhor amigo à esposa, passando até por nossos pais. Afinal, somos o tempo todo bombardeados por exemplos de pessoas que confiaram no seu semelhante e que, por isso, foram ludibriadas.
Malandros & otários
A julgar pela realidade que vejo registrada nas paredes das cavernas digitais, a vida é uma interminável batalha entre malandros e otários. Mas, se for assim mesmo, quem disse que nos cabe apenas o papel de malandros, espertos e algozes? Quem foi que inventou que esse é o caminho para a glória e a imortalidade? Meu Deus, como é possível almejar um mínimo de paz quando a vida se transforma num cansativo conflito entre pessoas empenhadas a passar a perna uma na outra?
Neste cenário, o mais provável é que as pessoas envolvidas nessa relação doentia acabem no chão, cada qual tendo levado uma rasteira. Ambas derrotadas, mas se julgando vencedoras. O que me traz a um aspecto fundamental dessa argumentação: partindo do pressuposto de que o otário faz aquilo que considera certo por princípio e, por isso, leva uma rasteira do malandro, o que de fato ele perde (além do equilíbrio, claro)?
Outro dia (ou há muitos dias) li uma frase cujo autor não consigo lembrar. Mas não é minha e, se eu lembrasse, pode confiar: tascava o nome dele aqui mesmo que fosse um autor desses que a gente tem vergonha de citar. Diz a frase que “o mundo é formado por algozes que se veem como vítimas e têm inveja dos outros algozes”. Pode ser até uma generalização bastante cruel, mas me pareceu bastante precisa, além de útil neste texto. Substitua vítimas e algozes por otários e malandros e, voilà, veja a mágica acontecer.
Eu poderia agora dar uma de intelectual arrogante e dizer que é possível romper com a relação mimética. Citar Girard. Falar de ciclos de violência. Ou sei lá mais o quê. Mas é começo de ano e, não sei você, mas eu já estou cansado e nada disposto a ficar interpretando mensagens crípticas. Por isso direi apenas que meu plano para 2022 é confiar. É cultivar uma espécie de ingenuidade intencional. Se vou parecer um otário ao longo do processo, paciência. Prefiro o sono profundo dos ingênuos à insônia atormentada dos espertalhões.
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