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Sei que você entrou aqui todo ansioso para ler o que tenho a dizer sobre o PSOL ter virado PT. E agradeço o interesse em minha opinião. Mas, antes de dar continuidade a este texto, sugiro que você largue os cientistas políticos (hahahaha) e leia agora mesmo “O Sonho de um Homem Ridículo”, de Dostoievski. Pode ir que eu espero.
Nesta novelinha escrita há 143 anos (!), Dostô explica por que mais de um milhão de pessoas votaram no candidato populista de esquerda que, para explicar sua postura de eterno confronto, é capaz de cunhar pérolas como “radicalismo é ter gente revirando o lixo para comer”. Guilherme Boulos e seu PSOL, partido contraditório até no nome, expressam a queda do homem e sua malfadada crença de que é possível se igualar a Deus e criar o Paraíso na Terra.
Não deu certo uma vez. Não deu certo duas, dez, vinte vezes. Não dará certo agora. Nem nunca. Porque a ideia de que é possível controlar a ação humana é antinatural. Mas Boulos, o Lula com contornos científicos, insiste no erro. E consigo arrasta uma legião formada sobretudo por uma elite intelectualizada que abdicou da fé na realidade e hoje prefere abertamente a fé na ciência social.
Paracetamoro
Não estou aqui, porém, para fazer uma análise espiritual de Boulos, do PSOL e dessa elite. Dostô, reconheço, faz isso um pouco melhor do que eu. Estou aqui para falar que, nos últimos anos, o eleitorado “de direita” esteve tão ocupado em rebater as acusações de fascismo e em pôr Lula & seus asseclas na cadeia que se esqueceu da força do discurso progressista.
Tão certo estamos (ou estávamos) do ridículo do discurso identitário, por exemplo, que ignoramos sua força entre os que já foram arregimentados pela fé secular da política. E que, portanto, não veem outros motivos para existir que não o fato de ser negro, homossexual ou trans e a possibilidade de “vingar a história de opressão” – ainda que isso seja puro delírio.
Tamanha foi, também, a obsessão da luta anticorrupção que nos esquecemos de que ela é uma febre que quaisquer trinta gotinhas de paracetamoro amenizam. O remédio, porém, não elimina o vírus, que é essa crença de que o Estado é meu pastor e nada me faltará. Durante décadas o PT professou esse credo, que agora é repetido pelo PSOL.
E não há reação capaz de ir contra esse movimento. Até porque a reação, isto é, o movimento difuso a que damos o nome vago de bolsonarismo, se baseia na mesma premissa: a de que o Estado é capaz de prover o maná que nos sustentará durante essa travessia do nada rumo a lugar nenhum. Não é.
Ressaca democrática
Ah, mas você está exagerando, argumenta o leitor. E não tenho como negar isso, porque realmente sou dado ao exagero. Sem contar que hoje é a segunda-feira pós-festa da democracia. Dia da tradicional ressaca política. É possível que Boulos seja apenas um vento que passou em nossas vidas, ou melhor, na vida dos paulistanos. É possível que o PSOL se revele uma quimera tão sem futuro quanto as causas ultraidentitárias de seu partido.
Mas também é possível que o discurso de vingança, mais uma vez, seduza uma população com uma noção deturpada de justiça e que ignora as premissas teóricas mais básicas que justificariam a existência do Estado. Uma população doutrinada por professores, muitos deles filiados ao PSOL, e que acredita que o prefeito, governador e presidente existem para lhes dar uma vida fácil, sem quaisquer obstáculos.
Volto, aqui neste parágrafo semiderradeiro, ao velho e bom Dostoievski e sua transformadora novela “O Sonho de um Homem Ridículo”, que aproveito para recomendar de novo. E de novo. E de novo. Eis como o escritor descreve a queda do homem e, incidentalmente, explica o fascínio que figuras como Boulos despertam:
“(...) O conhecimento é maior do que o sentimento, a consciência da vida é maior do que a vida. A ciência nos dará sabedoria, a sabedoria revelará as leis e o conhecimento das leis que regem a felicidade é maior do que a felicidade. (...) Todos sentiram tanta inveja dos direitos de sua personalidade que passaram a fazer todo o possível para prejudicar e destruir a personalidade dos outros, e tornaram isso o sentido de suas vidas. Depois veio a escravidão, até mesmo a escravidão voluntária; os fracos se submetiam aos fortes, desde que os fortes os ajudassem a subjugar os ainda mais fracos”.