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O jornalista Ascânio Seleme, do Globo, surpreendeu absolutamente ninguém ao publicar, no último sábado (11), um manifesto intitulado “É hora de perdoar o PT”, no qual conclama a população brasileira a perdoar o Partido dos Trabalhadores. Pelo que vi em minha bolha, as reações ao chamamento de Seleme variaram entre o “Jamais!” e o “De jeito nenhum!”. Seleme, contudo, toca num ponto importante e sobre o qual não há qualquer consenso: em que momento deixaremos o PT/Lula para trás?
Antes de tentar abordar a possibilidade/necessidade de perdoar o PT política e individualmente, convém dar uma espiadinha nos argumentos de Seleme, que começam com a seguinte frase: “Não há como uma nação se reencontrar se 30% da sua população for sistematicamente rejeitada”. Ele está falando, obviamente, dos 30% do eleitorado supostamente fiel ao PT.
Mas o que dizer da rejeição aos conservadores, aos evangélicos, aos liberais e até aos bolsolavistas que o mesmo PT nutre e estimula? Seleme, em seu texto, faz crer que o eleitorado petista (não militante) é vítima de um grande complô de centro-direita que o estigmatiza só (!) por causa da corrupção da "virtuosa" Era Petista. “Ninguém tem dúvida de que os malfeitos cometidos já foram amplamente punidos”, escreve o jornalista, mostrando que “ninguém” é uma palavra com significado completamente oposto, a depender de quem vê o mundo.
Adiante, ele diz que “Hoje, respeitadas as suas idiossincrasias naturais, homens e mulheres de esquerda devem ser convidados a participar da discussão sobre o futuro do país. Têm muito a oferecer e acrescentar”. Será que têm mesmo? Porque o que mais vejo os homens e mulheres de esquerda fazendo é “tomar e tirar”. E não estou me referindo, aqui, à corrupção. Trata-se de uma forma de ver o mundo e de fazer política que tem como objetivo silenciar o debate e destruir qualquer ponte que se queira criar. De Tabata Amaral a David Miranda, passando por Randolfe Rodrigues, Gleisi Hoffmann, Jandira Feghali e quetais, só vejo intenção de impor uma visão de mundo que o outro extremo, aquele que a esquerda não cansa de xingar de violento, racista, misógino, homofóbico, inculto, indiferente e perverso, rejeita no todo ou em parte considerável.
Adiante, Seleme escreve uma sequência de quatro afirmações apaixonadas. Três delas são equívocos assustadores e uma delas, no contexto geral da argumentação, só pode ser lida como uma confissão de cinismo. Confira comigo no replay: “Mas o PT é maior que isso e, como já foi dito, para ladrões existe a lei. Imaginar que o partido repetirá eternamente os mesmos erros do passado é uma forma simples, fácil e errada de se ver o mundo. Os erros amadurecem as pessoas, as instituições, os partidos políticos. Não é possível se olhar para o PT e ver só corrupção. O petismo não é sinônimo de roubo, como o malufismo”.
E os três parágrafos seguintes podem ser resumidos da seguinte forma. Primeiro, o PT deve ser perdoado porque, quando no poder, teve a oportunidade de pôr em prática seu autoritarismo latente, mas não pôs. Se não fez isso antes, não fará mais. Em segundo lugar, ele sugere que qualquer um que não tenha “boa vontade” para com o PT faz parte de “um grupelho ideológico, burro e pequeno”. Por fim, deve-se perdoar o PT porque “o Brasil não tem tempo para esperar por uma outra esquerda, renovada e livre da influência do PT” e “O país precisa se reencontrar logo para construir uma alternativa ao bolsonarismo, este sim um problema grave que deve ser enfrentado por todos”.
Dessa vez vai ser diferente
Apesar da argumentação bastante falha, baseada em pressupostos para lá de questionáveis, o manifesto de Ascânio Seleme é compreensível. Ele dialoga justamente com o militante petista que se sente excluído do debate público porque jura de pés juntos que, apesar do Lula Livre pichado na parede do quarto, nunca compactuou nem jamais compactuará com métodos heterodoxos de governo.
Seleme só ignora um elemento importante nesta equação: o trauma do brasileiro. Politicamente, ainda estamos muito distantes de perdoar o PT enquanto instituição, seus principais líderes e também militantes. E não é só por causa da roubalheira. A corrupção é só a parte mais visível de algo mais profundo, de uma ojeriza pelos métodos, pela retórica, pelos personagens – pela tragédia inteira.
É preciso deixar de marginalizar os 30% do eleitorado petista e construir pontes? Idealmente, sim. Mas, se essa ponte há de ser construída (e não superfaturada!) tendo por base a misericórdia, a segunda-chance, o dessa-vez-vai-ser-diferente, é preciso levar em conta que, no mundo muito concreto da luta político-eleitoral, talvez não exista nada mais valioso do que o perdão.
E como concedê-lo de boa vontade, como pede o articulista, se politicamente o PT continua se aliando com o que há de mais nefasto no mundo das ideias? Como perdoar uma instituição que, por exemplo, felicita o Partido Comunista chinês por seus 99 anos de uma história macabra? Que apoia o regime de Nicolás Maduro? Uma instituição cujos olhos brilham diante da realidade da Coreia do Norte e Cuba. E que não passa um dia sequer sem apontar o dedo para o resto das pessoas, dizendo que elas são fascistas?
Em se tratando de Partido dos Trabalhadores, seu eleitorado, os militantes, os líderes e sub-líderes, e a instituição como tal só terão alguma chance de serem perdoados depois que pedirem desculpas e mudarem de atitude – mas daí isso desconfiguraria o petismo enquanto movimento político. Enquanto modo de pensar. Enquanto forma de ver os outros seres humanos.
A jornada mais difícil
Há algum tempo, acho que quando Lula estava prestes a ser preso, em 2018, e fez aquele comício todo embriagado de si mesmo no Sindicato dos Metalúrgicos, propus em minhas redes sociais uma pergunta muito simples: se Lula viesse a público, pedisse desculpas, dissesse que merecia ficar um tempo na cadeia, doasse todo o patrimônio para uma instituição de caridade e jurasse jamais pegar num microfone novamente, você o perdoaria?
Poucos se atreveram a responder. Alguns me chamaram de comunista e petista enrustido. As poucas respostas giravam todas em torno de uma questão: como acreditar no arrependimento de Lula? Sim, foi a esse ponto que chegou a credibilidade do sertanejo que se tornou operário na cidade grande para depois virar Presidente do Brasil.
Tenho para mim que o perdão é a Virtude das Virtudes. É aquilo que realmente nos diferencia dos bárbaros. Mas é algo que demanda certo estado de espírito, certo contexto e uma altivez toda especial tanto de quem perdoa quanto de quem é perdoado. Perdão que se pede assim, publicamente, cheira a mentira. Perdão que se dá publicamente fede a vaidade.
Mais do que isso, o perdão é um gesto extremamente pessoal, íntimo. Do oprimido para o opressor, em silêncio, depois de uma profunda reflexão. Não pode ser dado e recebido, portanto, assim no atacado.
Do ponto de vista pessoal, é bastante possível perdoar o PT e o petismo. Talvez até seja mesmo recomendável. Afinal, ficar acumulando raiva e rancor não faz bem para a saúde. Mas, para usar um termo da moda, não se trata de uma jornada fácil. Até porque para perdoar assim é preciso, antes de mais nada, abdicar do conceito muito secular de justiça a que estamos apegados – e que às vezes é só um codinome para vingança.
Ainda não tive a oportunidade de me submeter a esse processo. O PT simplesmente não é um assunto muito presente em minhas preocupações existenciais, espirituais, metafísicas. O que, pensando bem, talvez até tenha sido uma forma acidental de perdoar por meio do esquecimento. Digo, o PT existe, Lula existe, o 13 existe, Gleisi Hoffmann e Dilma Rousseff e Zé Dirceu existem.
Mas apenas como um elemento a mais numa paisagem muito maior, mais complexa e admirável do que isso.
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