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À medida que você passa os olhos por estas pretensamente bem traçadas linhas, mais um tiro é disparado na Ucrânia. Tiro de fuzil ou de tanque. Ou talvez mais um míssil russo tenha caído numa área residencial de Kiev. Pessoas que há um mês estariam a esta hora na fila do pão ou publicando selfies com biquinho nas redes sociais ou assistindo a um jogo do Dínamo agora estão mortas.
E, no entanto, o tempo passa (sempre passa, não cessa de passar, está passando agora mesmo, enquanto você e eu perdemos tempo neste parêntesis inútil) e as notícias que antes geravam medo e uma espécie única de tristeza, desconsolada e impotente, vão perdendo a força. Depois de alguns dias, até o medo que antes pegava carona no sentimento apocalíptico dos movimentos ambientalistas desapareceu. Não será dessa vez que nossa geração verá um cogumelo atômico – e isso parece tranquilizar as pessoas para além do moralmente aceitável.
Pior: às vezes, por um processo que será estudado por cientistas neste momento ocupados em discutir o uso de máscaras, as notícias que vêm do front de batalha gelado no leste europeu servem de alimento ao cinismo relativista das Pessoas Que Têm Sempre Razão. “Morreram cem pessoas mesmo? Você tem como confirmar? Será que não foram só 98?”. Ou: “Nada disso está acontecendo. É tudo propaganda de guerra neonazista globalista”.
Outro dia, em meio às discussões sobre fertilizantes e as muitas nuances que fazem a festa dos relativistas à direita e esquerda, ouvi o argumento fatídico que não é nem belicista nem pacifista, muito pelo contrário: no Brasil morrem muitas mais pessoas do que isso e ninguém diz nada. O que é uma forma intelectualmente pobre de dizer que nossa guerra particular é mais importante porque ocorre no nosso quintal e que deveríamos agir como maus samaritanos preocupados com apenas com os infortúnios que vestem verde e amarelo.
E assim as imagens vão se sucedendo. A guerra vira rotina. Cem mortos ontem; vinte hoje; quinhentos amanhã – até que alguém perca a conta ou simplesmente desista. A imagem do velhinho que já sobreviveu a Stalin e à queda da URSS e que agora varre estoicamente os cacos de vidro da janela estilhaçada só comove mesmo cronistas sentimentaloides.
Em Lviv, depois de um ataque que matou dezenas de militares, uma Missa foi realizada em homenagem aos caídos em combate. Assisti a vídeos e vi fotos da cerimônia. Reproduzidos à hipervelocidade das redes sociais e espremidos entre um anúncio de hidratante especialmente desenvolvido para trangêneros obesos de pele negra e outro de um carro que reduz suas emissões e, por isso, serve de salvo-conduto para o céu dos ecochatos, vídeo e imagem são despidos de sua força transcendental.
Quero gritar que ali dentro daquela caixa de madeira há um ser humano destroçado por outro ser humano. Um jovem, talvez já pai de família, que tinha sonhos idiotas como são os sonhos de todos os jovens: assistir à mais recente produção da Marvel, viralizar nas redes sociais com um vídeo tosco no TikTok, ter namoradas e jamais, em hipótese alguma, envelhecer. Quis gritar que o algoz dele talvez seja um jovem que compartilhe dos mesmos sonhos e valores. Quis gritar que para cada jovem morto há mães, pais, irmãos, tios, primos, amigos e até desafetos que morrem um pouquinho.
Quis, quero, vou citar o poema de W. H. Auden que traduz com perfeição o que significa a perda de uma pessoa para aqueles que a amam. É como se a vida tivesse de ser vivida por inércia e como se cada segundo de felicidade simples fosse uma afronta aos que não estão mais aqui para deles desfrutarem:
Apaguem as estrelas: já nenhuma presta.
Guardem a lua. Arriado, o sol não se levante.
Removam cada oceano e varram a floresta.
Pois tudo mais acabará mal de hoje em diante*.
Mas desconfio que ninguém vai ouvir. Afinal, a ameaça de uma guerra nuclear está praticamente descartada. Os alemães estão quentinhos em suas casas aquecidas pelo gás russo. Nos Estados Unidos, tem homem ganhando competição de natação feminina. Você viu quanto está valendo um Bitcoin? E o mais importante: hoje tem eliminação no Big Brother Brasil.
* A tradução de Nelson Ascher é ótima, mas nada se compara à força dos versos originais em inglês: The stars are not wanted now; put out every one,/ Pack up the moon and dismantle the sun,/ Pour away the ocean and sweep up the wood;/ For nothing now can ever come to any good.