Outro dia fui a um enterro no Cemitério Municipal. Quero dizer, parecia um enterro. Bem verdade que tinha um caixão e um corpo cercado por flores e rendas, coroas de vários tamanhos e em número nunca suficiente, e os devidos enlutados sentados em cadeiras precárias. Quando caiu a noite, apareceu um tal de Crisóstomo, que um amigo meu disse ser o agente funerário. Ele chegou, fez uma cara feia, sacou do bolso um isqueiro Zippo e, sem hesitar, acendeu os quatro sírios que cercavam o defunto.
Imediatamente me virei para a pessoa ao meu lado. Era uma mulher linda e eu bem que estava precisando de uma desculpa qualquer para puxar conversa com ela. E, se você está se perguntando que tipo de homem sabidamente casado inventa uma traição dessas só para escancarar que o eu-lírico nem sempre é o eu-pessoa física, sinto lhe informar: este alguém sou eu.
- Você está pensando o mesmo que eu? – perguntei.
- Depende. Estou pensando várias coisas no momento – foi a resposta dela. Sem malícia. Sem grosseria. Ela estava mesmo pensando em muitas coisas ao mesmo tempo.
Ficamos ali de bate-papo por uma boa hora, até que, cansada, ela disse que ia sair para tomar ar e nunca voltou. Paciência. Até porque eu estava certo e aquilo que parecia ser um enterro como outro qualquer não era nada disso. Era uma experiência do tal Crisóstomo, o homem que tinha acendido os sírios e que, no exato momento em que registro as notas desta crônica no meu caderninho, está ali no canto, um semissorriso no rosto, observando todos com a apreensão típica dos cientistas malucos.
Sei que deveria ter ficado calado. Mas quem me conhece também sabe que, nestas horas, sou tomado por um impulso incontrolável de encontrar a verdade. Talvez por ter sido jornalista um dia. Talvez por ser apenas um chato. Fato é que fui até o sr. Crisóstomo. Que, para minha surpresa, parecia estar esperando por minha abordagem.
- Finalmente! Sei o que você está pensando e você tem razão.
- Sabe?! Tenho?!
- Sim. Isso daqui não é um velório de verdade. É uma experiência.
- Ah, o círio com “s”, não é? Eu bem tinha percebido.
- Esta é só uma das muitas experiências que tenho feito ao longo dos anos. Quero ver quantas pessoas aparecerão por aqui me corrigindo, dizendo que círio é com “c”, não com “s”. Quero ver quantas pessoas lerão só o primeiro parágrafo e correrão para me xingar de analfabeto – explicou ele.
- Interessante. Mas o senhor já parou para pensar que há outros resultados possíveis para esta sua experiência? – perguntei.
- Quais?
- Eu, por exemplo, jamais cogitei que pudesse haver um erro de ortografia de sua parte. Dá para ver que o senhor é muito inteligente. Na verdade, vim aqui lhe dizer que estou muito incomodado com a presença desses quatro sírios em chamas ao redor do caixão. O senhor não tem pena dos homens, não? E ainda por cima refugiados de guerra!
- Mas e se eles fossem terroristas? E se eles forem... homens-pavios?! – tentou Crisóstomo.
Rimos os dois da piada sem graça. Crisóstomo pediu licença e saiu para pegar um cafezinho. No caminho, deu a volta no caixão e, com gestos hábeis, apagou os círios que, no final das contas, nunca foram sírios e vieram de uma fábrica de velas ali em Piraporinha do Oeste mesmo. Ele se aproximou, me deu uma xícara de café e finalmente perguntou:
- E quais as outras possibilidade para isso tudo, meu astuto enlutado anônimo?
- Existe sempre a possibilidade de alguém notar o erro e se calar. Por timidez, educação ou... Como é mesmo aquela palavra em alemão que tá na moda?
- Schadenfreude.
- Isso mesmo. Pelo prazer de se sentir superior a um idiota que comete um erro ortográfico. E note a gravidade disto: essas pessoas perceberão o erro logo no primeiro parágrafo e, se ainda assim insistirem em ler o texto, deparar-se-ão (!) com ele novamente no quarto parágrafo, desistirão de ler o restante e (atenção!) passarão a vida toda achando que você é um analfabeto. E rirão disso por dentro. E, sempre que virem seu nome por aí, se lembrarão dos sírios que não eram sírios, e sim círios.
Crisóstomo ficou ali mais um tempo, soltando umas mesóclises desavergonhadas. Eu, que nem conhecia o morto, ainda tentei abordar mais duas moças tristíssimas antes de pedir um Uber. Estava na porta do velório acompanhando o trajeto do carro pelo celular quando Crisóstomo pôs a mão no meu ombro – algo que não se deve fazer com tantos fantasmas por perto. Assustado, me virei para encontrar o novo amigo com uma risadinha perversa nos lábios.
- Você se esqueceu de outra possibilidades, meu caro. Essas, sim, muitíssimo assustadoras!
- Quais? – perguntei, sem muita empolgação. Olhei para trás e as moças lindas e solteiras choravam. O Uber mandou uma mensagem dizendo que tinha parado para abastecer. Depois de uma pausa dramática, várias reticências em sequências e um respirar fundo, ele respondeu:
- As possibilidades de não perceberem erro algum e de apenas se sentirem indiferentes a esta crônica.
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