Eles chegaram com a truculência esperada, mas sempre desnecessária. Se bateram na porta era menos para nos chamar e mais para anunciar que a derrubariam. O estrondo, como era de se esperar, atraiu a atenção dos outros moradores do andar. Todo mundo saiu à porta em seus trajes de sono. Isaac, o vizinho de três anos com os quais eu tinha deliciosas conversas infantis, começou a chorar. No outro extremo do corredor, o arquiteto petista ria um risinho insondável.
Não que a chegada daqueles homens fosse exatamente uma surpresa para mim. Os avisos foram muitos, mas minha displicência, fantasiada de coragem, foi maior ainda. Eu não ligo para o que os outros dizem, eu sou pequeno demais para alguém se importar comigo, ah, cara, é só humor, eu peço asilo político na Suíça – esses eram alguns dos argumentos que eu usava para acalmar aqueles que me alertavam do perigo.
As ameaças, sempre anônimas e sempre escritas em CAPS LOCK, tinham um quê de senilidade, quando não daquele ímpeto infantil facilmente debelável. Os erros de português nessas mensagens eram, para mim, prova de sua não-seriedade. Ninguém ameaça prender, torturar ou matar outra pessoa escrevendo errado, eu pensava. Ninguém se torna um monstro sem saber usar o idioma corretamente.
Mas o primeiro brutamontes, chamado de Hércules por seus comparsas, começou logo dizendo que a gente viemos através de uma denúncia anônima. E aí eu percebi que estava perdido. Porque quis dizer que o certo é “a gente veio” ou “nós viemos” e, mais importante, é “por meio de”, não “através”, mas recebi um safanão na orelha antes mesmo de incorporar o Pasquale. Caí no chão e imediatamente me encolhi e tentei proteger a cabeça da melhor forma possível, esperando por chutes ou, pior ainda, esperando por um “pra mim fazer” na boca do estômago.
Em vez disso, vi diante de mim estendida a mão de Tritão, codinome de um dos policiais. Era uma mão (e não um mamão) pequena e macia e, enquanto elx me erguia, imaginava aquela mão me acariciando ou virando as páginas de um livro (sou desses). Ao olhar para o rosto de Tritão, contudo, me confundi todo: havia cílios postiços e batom, mas também barba. Os seios avantajados contrastavam com a postura inegavelmente masculina. E, quando elx disse que eles não estavam ali para machucar ninguém, vi o pomo-de-adão subir e descer no pescoço fino.
Perguntei aos distintos cavalheiros o que eles queriam. Até pensei em perguntar se eles tinham mandado judicial ou fazer ali mesmo, no meio da sala, uma defesa apaixonada e inútil das liberdades individuais. Mas a porta caída com suas entranhas de MDF à mostra e o persistente zumbido no ouvido me fizeram mudar de ideia.
Enquanto quatro policiais vasculhavam minha casa em busca de alguma coisa capaz de provar que eu era “um indivíduo pernicioso para o perfeito funcionamento da sociedade”, como dissera o deputado Tampinha (PJ-PR) na semana anterior, Tritão me apontava a cadeira. Sobre a mesa da sala, havia um quebra-cabeças por montar. Era uma dessas imagens bregas de um castelo europeu qualquer fedendo a decadência e mofo. Hércules se aproximou e eu me encolhi todo à espera do soco. Ele estendeu o braço, pegou a caixa do quebra-cabeça e jogou na minha direção.
Sem entender a função do quebra-cabeça na história, encarei o policial perguntando por que com os olhos. Hércules não disse nada, mas entre nós não havia silêncio. A casa estava sendo toda revirada e, por um instante, agradeci por morar num quarto-e-sala, e não na mansão que pretendia comprar quando o dinheiro que a CIA e Steve Bannon me prometeram caísse na conta. Havia alguma beleza e até comicidade na imagem de um brucutu de dois metros de altura jogando minhas cuecas para o alto na esperança de encontrar prova da minha maldade retórica.
Sob a chuva de cuecas e meias e até aqueles chapeuzinhos ridículos que eu usava para proteger a calva do sol, de primeira não ouvi a voz fina de Tritão. Peguei a frase pela metade e, enquanto tentava entender a que o “disso” de “sua vida depende disso” elx se referia, vi Hércules sacar a arma e apontá-la para minha têmpora.
Abri a boca para pedir calma, mas não saiu nada. Arregalei os olhos suplicantes para Tritão. Que, como se por telepatia, pareceu ter entendido. Ele, ela ou elx me explicou de novo, bem devagar, as regras daquele joguinho. Eu ficaria ali, sentado, pensando nas minhas oportunidades limitadas de futuro, enquanto montava o quebra-cabeça. Eu tinha até o pôr-do-sol para encaixar a última peça. Do contrário, Hércules faria uso do que ele acreditava ser o poder pacificador da pólvora.
Elx riu. Eu ri. Hércules não riu; só apontou com a arma para o quebra-cabeça com a imagem do castelo. Onde, ironicamente, há duzentos anos vivera o Barão de Neugebauer, executado pelo Príncipe Radulf por não concordar nem discordar dele, muito pelo contrário. Sem outra opção que não a de continuar vivo, respirei fundo, peguei a primeira peça e me pus a montar. Faltavam 999.
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