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Aí alguém cunhou o termo “guerra cultural”. Quem foi o falastrão? Gramsci? Bill O’Reilly? Algum intelectual hippie no meio de uma viagem psicodélica? Não. Foram os belicosos alemães do século XIX que, sob a liderança de Otto von Bismarck, lutavam contra a influência da Igreja Católica.
Que seja. O fato é que o termo ganhou popularidade há mais de meio século, com fileiras e mais fileiras de voluntários se digladiando em batalhas simbólicas nas livrarias e bancas de revista (quando essas coisas existiam), teatros, programas de televisão e rádio, filmes e, mais recentemente, nas redes sociais. Acho que dá para dizer sem medo de soar catastrofista: vivemos num estado permanente de guerra cultural desde que acordamos ao som de um carro que passa na rua tocando um funk alto demais até a hora de dormir, embalados pelo ruído de fundo da novela, na qual a mocinha trans faz um emocionado discurso sobre a construção social do gênero.
E a gente se acostumou tanto a esse estado de guerra que não se deu conta do quanto ele é imoral. Como todas as guerras, por sinal. Talvez por culpa de toda uma seara de filmes sobre a Segunda Guerra Mundial, fomos levados a crer que existem guerras virtuosas. E, assim no atacado, é possível mesmo ver algumas guerras do século XX como a luta do bem contra o mal. No varejo, contudo, isto é, quando a gente sabe o nome do soldado ou quando mora na rua que é alvo de míssil, a guerra é puro horror.
O contra-argumento à ideia da guerra como algo intrinsecamente imoral são os grandes feitos heroicos. Oscar Schindler. O homem que, com uma só perna e munido de apenas um estilingue, derrotou todo um batalhão inimigo. A carnificina do Dia D. Aquele corredor do filme da Angelina Jolie. E até nossos queridos pracinhas. Mas, transpostos para a tal de guerra cultural, como esses atos heroicos se revelariam? Na derrubada de estátuas? Na queima de livros? No cancelamento de vozes dissonantes?
Seja qual for a estratégia, tanto na guerra ignorante quanto na cultural o objetivo é sempre o mesmo: a eliminação do inimigo. E não há absolutamente nada de virtuoso nisso. Por mais que você considere abjetas as ideias de Márcia Tiburi, sinta engulhos diante da doutrinação de um Jonathan van Ness ou se revolte com o sentimentalismo politicamente correto de Fabrício Carpinejar, nada justifica que se proponha o extermínio (real ou simbólico) dessas pessoas.
Sei que, ao longo do tempo, fomos convencidos de que essa intolerância toda é necessária para nossa própria sobrevivência. A guerra cultural, veja só, se apropriou da ideia de “matar ou morrer”, que internalizamos como se fosse a realidade – nem que seja a realidade do espaço virtual. Não é. Se o ser humano abdica da busca pelas transcendentais (verdade, bondade e beleza) é por escolha própria, e não porque a escola ou a sociedade ou a vida o obriga a ler, sei lá, Paulo Coelho, ou assistir ao Especial de Natal do Porta dos Fundos.
Outra coisa que os próprios produtos da guerra cultural expressam com esse culto ao heroísmo violento é o vício em guerra. Vício no conflito. No gosto do sangue do inimigo. Talvez até na expressão de agonia dele. Na sensação de triunfo. É desse vício que padece o debate público, cujo discurso está poluído por expressões de força bélica.
Não há nada de virtuoso na tal guerra cultural. Nada de nobre, de elevado, de belo, de heroico. E não, você não será louvado por decapitar (retoricamente!) feministas, antifas, ativistas LGBT, militantes que veem racismo em tudo, etc. Ao contrário, seu certificado de alistamento nas fileiras bárbaras dessa guerra é, na verdade, uma confissão de derrota dessa tal de Civilização Ocidental da qual você diz se orgulhar e que foi a muito custo erguida sobre os pilares muito frágeis da convivência pacífica entre as diferenças.