Ao longo de todo o fim de semana que se seguiu à morte de João Alberto numa loja da rede Carrefour em Porto Alegre, os que acompanham com uma sofreguidão quase masoquista o caso se dividiram em dois grupos. E não posso concordar com nenhum dos dois, senão seríamos três falando bobagem.
De um lado está a esquerda identitária que insiste em tratar o caso como racismo. O que é compreensível. Faz tempo que queremos um George Floyd para chamar de nosso. Estava até achando estranha a demora. Vai ver o manual de guerrilha urbana do movimento Black Lives Matter tinha ficado preso primeiro na alfândega e depois no centro de distribuição dos Correios em Curitiba. Como sói.
Não à toa, logo em seguida já teve intelectual racialista (apesar do oxímoro) dizendo que a morte de João Alberto, o Beto, é prova mais do que o suficiente do nosso racismo estrutural. Houve até quem dissesse que a culpa pelo espancamento é da violência retórica praticada pelo presidente Bolsonaro. Se bem que, se violência retórica se traduzisse sempre em violência física, eu já nem estaria mais nesse mundo.
O cadáver de Beto é extremamente útil para essa esquerda identitária. Ele reforça a ideia de “opressão histórica” contínua dos negros no Brasil. Eu disse “negros”? Me enganei. A morte de Beto, por um passe de mágica, reforça a ideia de “opressão histórica” de todas as minorias possíveis e imagináveis. E de quebra, aproveita para dar uma cutucada no capitalismo ambicioso, que terceiriza a segurança a fim de reduzir custos, apesar das sucessivas campanhas progressistas.
Banzo da barbárie
No canto oposto, com 1,50m, pesando 200kg e morando no porão da mamãe, está certo grupo que se identifica como “direita conservadora”, embora a Direita Conservadora não necessariamente se identifique com o certo grupo. São pessoas que justificam a ação dos seguranças porque (a) foi ele quem começou, tia e (b) ele tinha uma extensa ficha criminal.
São pessoas para as quais o ser humano não pode ser redimido. E, para elas, o cadáver de Beto também é extremamente útil. Afinal, ele prova que o sistema penal no Brasil não serve para nada. Que a impunidade é pandêmica e que estamos vivendo numa selva e que temos que ter armas e bobeou, dançou, mermão. Como bônus, essas pessoas ainda usam a morte do infeliz para promover a pauta da pena de morte – esse inexplicável banzo da barbárie.
A agridoce contradição desse discurso é que os seguranças responsáveis pela morte de Beto e que não deram a ele o benefício do devido processo legal, serão julgados por um sistema que lhes dará (ainda que em teoria) todas as garantias de vida possível. Eles serão considerados inocentes até que se prove em contrário. E, uma vez provada a morte, certamente poderão usar a ficha criminal da vítima como atenuante.
E, dando sequência ao viciadíssimo ciclo de estupidez, talvez no futuro, depois de beneficiados por progressões de pena e soltos, os seguranças possam vir a cometer algum deslize que os torne vítimas de um crime. E, como são pardos, a esquerda identitária dirá que é racismo estrutural. E, como estão à solta, o lado B da direita conservadora dirá que eram bandidos e mereciam morrer.
E assim por diante.
Antes que me chamem de isentão
Diante de uma vida de violência e perversidade da qual tomamos conhecimento por causa de uma tragédia, muitos se perguntam como era possível que um homem com antecedentes criminais e um ímpeto evidentemente bruto pudesse estar à solta, fazendo compras tranquilamente num supermercado. Mas a questão talvez seja outra: como é possível que alguém, aos 40 anos, tenha feito seguidamente tantas escolhas erradas na vida? Indo além: como é possível que alguém passe toda uma vida cedendo aos impulsos mais primitivos sem se submeter a qualquer tipo de repressão (e autorrepressão) moral?
Se estou querendo pairar acima do debate entre Foi Racismo F.C. e C. R. Era Bandido? Sim, estou. Porque esse é, no final das contas, um objetivo nobre. Pairar sobre um debate sujo e mentiroso, um falso debate, a fim de tentar (tentar!) ver a imagem da situação como algo que vai além de um caso que talvez esteja esquecido na semana que vem. Porque a verdade, aquela que liberta, nem sempre está no território de uma das facções ideológicas envolvidas.
Até onde meu humilde horizonte alcança, o que vejo se descortinar à minha frente é um deserto sombrio onde a vida há muito deixou de ser santa – isto é, deixou de ter valor para além das querelas terrenas. Nesse deserto, as pessoas, divididas em facções, cada qual apegada a um tipo de barbárie, se digladiam porque querem ter razão sobre questões que estão além da razão.
É uma terra na qual os homens consideram que têm poder sobre a vida alheia porque ele é de esquerda e a vítima é direita – e vice-versa. Quando, na verdade, essa verdade que enxergo porque sou acima de tudo um esperançoso, a vida de todos só voltará a ser considerada santa no dia em que o último direitista for salvo do linchamento pelo último esquerdista. E vice-versa.
Enquanto a vida não for santificada, sacralizada novamente (os mais cínicos dirão que ela nunca foi), continuaremos com esse papinho grotesco, indigno da atenção que dispensamos a ele, de “foi racismo” x “era bandido”.
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