Então o Youtuber Felipe Neto foi agraciado com um espaço para dar sua opinião naquele que um dia foi o mais prestigiado jornal do mundo: o New York Times. Opinião em vídeo, cheia de caras e bocas e piadinhas e aquele encadeamento de raciocínio próprio de quem se assume como um palhaço e cuja especialidade não é, evidentemente, a dialética aristotélica, e sim os vídeos patetas (palavras dele, não minhas).
Curiosamente, o vídeo foi publicado um dia depois de a ex-editora de opinião do jornal, Bari Weiss, divulgar uma carta de demissão na qual acusa o centenário Times de sujeitar seu outrora credibilíssimo jornalismo à opinião das redes sociais. À opinião justamente de pessoas como o goofy Felipe Neto, que numa das cenas de seu vídeo usa o refinado argumento de fingir não saber falar hidroxicloroquina [sobe a claque].
O Peter Pan do debate político brasileiro brinda ainda o espectador que conseguir chegar ao fim da peça publicitária pró-Joe Biden com um festival de semiverdades escolhidas com cuidado para fazer cosquinha no ouvido da militância do PSOL ao norte e ao sul do Equador. Um editor minimamente honesto e criterioso, por exemplo, jamais deixaria passar o trecho em que Felipe Neto insinua que Bolsonaro está querendo instaurar uma ditadura no Brasil mostrando imagens daquela famosa reunião ministerial que antecedeu a saída do ex-juiz Sergio Moro do governo.
Mas é a tal coisa: a esquerda, mais do que nunca, enxerga o debate político como uma interminável guerra. E, numa guerra, a primeira vítima é sempre a verdade. Nas guerras também a moral se torna mais flexível. O que explica por que os loucos ganham voz e são aplaudidos por sua insanidade, desde que ela seja útil ao esforço bélico.
Desonestidade intelectual
O que chama a atenção no vídeo de Felipe Neto é sua extrema, ainda que talentosa, desonestidade intelectual. Não que ele não possa se posicionar contra o presidente Jair Bolsonaro, contra o que ele julga ser o conservadorismo, contra o que ele considera uma cruzada ultradireitista, enfim, contra essas coisas todas pelas quais seu público infanto-juvenil nutre uma ojeriza meio irracional. Mas por que é tão difícil, para Felipe Neto e os seus, fazerem uma oposição honesta e coerente?
Depois de se fazer de tonto, dizendo-se apenas “um palhaço que precisa falar sério” e que faz o vídeo desinteressadamente, sem nenhuma pretensão de conquistar um público novo, Felipe Neto dá início ao seu argumento usando números absolutos para dizer que Donald Trump é o culpado pelas mortes por coronavírus nos Estados Unidos. E que logo atrás vem ele, Jair Bolsonaro, chamado de “pior presidente da Covid do mundo” – o que quer que signifique isso.
A partir daí, Felipe Neto retrata Jair Bolsonaro como um militar que defendeu o uso da tortura durante a Ditadura, um homofóbico confesso e alguém que defendeu o fuzilamento real dos petistas. São três recortes realmente indefensáveis da biografia do presidente. Três recortes que atestariam um fato incontestável: o brasileiro elegeu o Anticristo como presidente. Felipe Neto só esquece de explicar como um ser tão deplorável assim foi eleito por 57 milhões de pessoas, depois de a esquerda virtuosa, amada e pura ter ocupado o poder por 14 anos.
Nada é tão simples nem tão preto no branco, tão... consequencialista quanto faz crer Felipe Neto. E tudo isso para quê? Para se chegar à conclusão de que as 70 mil mortes (até aqui) por Covid-19 no Brasil são culpa única e exclusiva de uma pessoa: Jair Bolsonaro. Para reforçar seu ponto, Felipe Neto usa imagens hiperbólicas de covas abertas num cemitério qualquer. E faz aquela pergunta retórica que é a marca registrada das grandes e inúteis discussões de botequim: “Preciso falar mais ou vocês já entenderam?”.
“Isso é nojento até mesmo sem pandemia”
Partindo do pressuposto de que seu espectador ou não entendeu ou é masoquista a ponto de querer mais, mais, mais dados que enfatizem a monstruosidade de um Bolsonaro genocida, Felipe Neto diz que o presidente brasileiro é tão, tão, tão ruim que perto dele Donald Trump é um Patch Adams – fazendo referência ao médico-palhaço imortalizado por Robin Williams.
As provas disso Felipe Neto as recita ressaltando os pontos de exclamação que certamente constam do roteiro. “Mas Bolsonaro faz isso [participar de aglomerações] o-tem-po-to-do”, diz o Youtuber. E continua: “Ele vai a manifestações contra o Congresso! Ele vai a manifestações que pedem intervenção militar! Ele vai a mercados lotados! Ele vai a cerimônias militares! Ele vai a churrascos na garupa de um jet-ski! Ele vai a protestos contra o STF!”.
A indignação prossegue num crescendo que culmina com imagens de Bolsonaro agindo como um monstro anti-higiênico que coça o nariz com a mesma mão que usa para cumprimentar uma pessoa. Punch line: “Isso é nojento até mesmo sem pandemia”, diz Felipe Neto.
Não, infelizmente não é uma autocrítica.
Tropeçando nas cordas da liberdade
Estamos na metade do vídeo-opinião. Inspirando-se em Jon Stewart, Felipe Neto segue elencando motivos que fazem de Jair Bolsonaro o “pior presidente da Covid do mundo” – o que quer que signifique isso. “Assim como Trump”, ele acredita em remédios milagrosos, como a hidroxicloroquina, por exemplo. Mas ele é pior do que Trump porque não se restringe a acreditar no remédio e a recomenda ao povo. Ele usa a capacidade de produção do exército para fabricar hidroxicloroquina, quando faltam remédios nos hospitais públicos. Ele demite autoridades que, tadinhas, fazem de tudo para manter o povo seguro, de quarentena.
Mais: Bolsonaro “incita a violência”. Neste trecho, o vídeo-opinião alcança seu ponto mais baixo. Felipe Neto usa imagens daquela famosa reunião ministerial na qual Jair Bolsonaro critica as medidas de isolamento social e, atacando prefeitos e governadores que agem como despotazinhas do sertão, diz “como é fácil impor uma ditadura no Brasil”.
Se eu fosse uma dessas agências de checagem, colocaria até o selo de “Fake News” no vídeo. Mas não sou e, ao contrário dessa censura socialmente aceita, acredito que personalidades como Felipe Neto devem ser expostas em seu momento de maior vulnerabilidade, quando tropeçam das cordas da liberdade (parafraseando o saudoso Antônio Abujamra).
E, para quem gosta de ver pessoas se atrapalhando com os fatos, o vídeo de Felipe Neto é um banquete. “Finalmente, à medida que a crise piora, Bolsonaro começa a rir dos mortos”, diz o palhaço que faz as vezes de articulista, manipulando a realidade como quem faz aqueles bichinhos com bexigas. Sobra até para a Ave Maria que um sanfoneiro tocou numa das transmissões do presidente – como se a expressão de fé, ainda que desafinada, fosse digna de deboche.
Derrubar o dono do circo
Na última parte do vídeo de pouco mais de seis minutos, Felipe Neto se dedica a aconselhar os norte-americanos a não reelegerem Trump “pelo bem do Brasil”. O argumento é o de que (atenção!) a suposta amizade entre o presidente norte-americano e Jair Bolsonaro legitima toda essa monstruosidade do brasileiro. E que, portanto, Trump está “levando o Brasil para o abismo”. Logo, a fim de que os brasileiros possam “lidar com o nosso louco”, é necessário que Donald Trump não seja reeleito.
Em seu delírio megalomaníaco, será que Felipe Neto realmente se acredita capaz de influenciar o eleitor trumpista do interior de Iowa?
Felipe Neto é inegavelmente um comunicador talentoso. Um Silvio Santos dos novos tempos. Ele domina a linguagem, o internetês, e se comunica bem com crianças de todas as idades. Uma pena que, desprovido de uma sólida base moral (e, por extensão, política), tenha se deixado contaminar pela sanha destruidora progressista, se autocondenando ao papel do eterno palhaço sem graça que se esforça para falar sério, na esperança de derrubar o dono do circo e, assim, ter um lugar de maior destaque no picadeiro.
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