Depois de uma campanha marcada por socos e cadeiradas e de uma eleição em que se destaca a aparente e surpreendente volta da confiança da população no processo eleitoral, eis que chegamos ao dia em que os resultados são contabilizados. É quando a urna simbólica e questionável (ao contrário das torradeiras do TSE) dá seu tradicional recado. Aquele que, em meio às comemorações e lamentações e os muitos vieses de confirmação, tentamos ouvir, na esperança de aprender algo que nos seja útil daqui a dois anos.
Aqui estão algumas das coisas que aprendi depois que os votos foram totalizados, criando uma capilaridade ideológica nova no Brasil. Digo, será que é nova mesmo? Ou será que (atenção para a insistência na referência sanguínea!) esse sistema circulatório de projetos e ambições políticos está tão contaminado pela mentalidade esquerdista, a ponto de turvar nossa visão e audição, e de nos impedir de ouvirmos corretamente o recado das urnas? Seja lá como for:
Agressividade na dose certa
De tempos em tempos o brasileiro se apaixona por esses personagens que prometem se infiltrar no Sistema para mudar tudo. Nada menos do que tudo. Às vezes dá certo e às vezes dá muito certo. Mas às vezes dá errado ou quase errado, porque não se pode dizer que Pablo Marçal, o outsider da vez, seja um derrotado com seus mais de 1,7 milhão de votos. O problema é que o espírito revolucionário de um outsider (por mais conservador que ele se diga) exige uma boa medida daquela agressividade difícil de dosar. E quando se erra a dose, meu amigo, já era.
Distorções
Ainda sobre os outsiders e os fenômenos das redes sociais, a urna mandou o seguinte recado para mim, para você e para eles: nem sempre realidade real coincide com a realidade virtual. Afinal, a primeira é incoerente como a própria vida, enquanto a segunda se baseia em técnicas de marketing digital para gerar o famoso engajamento – que parece traduzir a vida, mas só parece. Não que sejam duas realidades necessariamente distintas. Claro que há pontos de contato entre elas. Mas nunca, jamais, em hipótese alguma o virtual há de substituir, muito menos se sobrepor ao real.
Voto do f***-se!
Outro recado interessante diz respeito aos limites do voto de protesto. Aquele que chamo carinhosamente de “voto do f***-se!” e que se alimenta da indignação e da desesperança de um eleitorado que aposta no caos purificador. Trata-se de um voto niilista e antidemocrático; voto de coringa. Pois ele tem limites, como já disse. E ainda bem. Do contrário, nossa democracia, hoje um hospício, se transformaria num zoológico. Pensando bem, que isso não aconteça de fato é um desses milagres que a gente ignora.
O voto tem razões...
Por falar em milagre, a reeleição do malandro Eduardo Paes no Rio de Janeiro é um dos recados mais eloquentes das eleições municipais. Traduzindo o urnês: o voto tem razões que a própria razão desconhece. E não parafraseei Pascal à toa. Acontece que, a despeito de tudo o que se possa dizer de Eduardo Paes, ele projeta a imagem de alguém que ama e até idolatra uma cidade extremamente carente e sedenta de autoafirmação, apesar de sua história e paisagens. E isso acaba sendo mais importante do que a relação de Paes com Lula e Sérgio Cabral, por exemplo.
Cegueira da surdez
Recado dado, recado entendido, pois: o voto jamais será totalmente racional, baseado em ideias ou na investigação do caráter do candidato. Uma lição que, para a minha surpresa, alguns analistas de direita têm se recusado a aprender, culpando o eleitor pelo fracasso no pleito. Culpam o eleitor? Sim, o eleitor! Em relação tanto a Pablo Marçal quanto ao desempenho do NOVO, por exemplo, aqui e ali ouvi/li boquiaberto análises que, no frigir dos ovos, acabam por chancelar a existência de aspirantes a déspotas esclarecidos, como Luís Roberto Barroso e sua epistocracia – a tirania dos que (acham que) sabem.
A cegueira dessa surdez, por assim dizer, é assustadora. Afinal, se o povo não sabe votar no que é bom, como diagnosticou a genial filósofa política Joice Hasselmann, a democracia não faz sentido algum. Ou, por outra, se a ignorância alheia é empecilho para o triunfo da minha vontade, que se imponha a minha vontade – mas não é assim que pensam os iluministros e quetais?
O buraco de rua
Em outro bilhetinho simbólico que recebi (recebemos) das urnas se lê que, em se tratando de eleições municipais, a zeladoria da cidade ainda é mais importante do que amplas questões ideológicas. Ou seja, nesse tipo de pleito, o buraco na rua é mais importante do que o impeachment de Alexandre de Moraes. O que parece ruim, mas só porque estamos com muita raiva. No fundo é bom que o concreto sempre tenha certa vantagem sobre o abstrato.
Fala mais alto, urna!
Por fim, o recado mais importante e aquele que muitos fazem questão de não ouvir: democracia pressupõe aceitar a existência de pessoas totalmente diferentes de nós. Uma diferença que muitas vezes consideramos repugnante, mas isso só acontece porque no fundo (ou nem tão no fundo assim) somos soberbos e gostamos de olhar o mundo de cima, com a intenção de dominar aqueles que vemos como inferiores.
A chamada festa da democracia, portanto, é ou deveria ser uma lição de humildade. O voto é ou deveria ser um momento para reconhecermos nossa pequenez e o caráter ridículo desse nosso delírio de mudar o mundo e moldá-lo de acordo com a nossa vontade. Mas, como disse, esse é um recado que muitos fazem questão de não ouvir. Fala mais alto, urna!
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