Por se recusar a ceder o lugar o avião para uma criança, ela se tornou símbolo da resistência contra o vitimismo estrutural.| Foto: Reprodução
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Aconteceu e, como sói neste nosso tempo, virou manchete: uma mulher se recusou a ceder seu lugar na janela do avião para uma criança. Revoltada, uma passageira, dizem que a mãe do mimadinho, falou em falta de empatia. Algo que, para ela, é repugnante. Tão repugnante que ela filmou a cena e achou por bem expor tudo naquela máquina de moer almas que é o TikTok. E olha eu aqui escrevendo sobre esse gigantesco nada, para o deleite de alguém (você?).

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Que absurdo!

Só se fala disso e até aqui a opinião que tenho ouvido é um unânime “que absurdo!”. Da primeira vez que ouvi isso, levei um susto. Por um instante, pensei que o absurdo a que se referia meu interlocutor (um simpático motorista de Uber) era o fato de a mulher não ceder lugar para a criança. Mas não. Ufa. O absurdo, reconhece o bom senso do homem comum, está no fato de a mãe se revoltar porque uma mulher não quis ceder o lugar para seu filho.

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38 trágicos segundos

No vídeo de 38 trágicos segundos cheios de... nada, ouve-se uma voz feminina acompanhada pela concordância meio patética de uma voz masculina. “Ela não quer trocar de lugar com uma criança. Até perguntei se ela tem alguma síndrome, alguma coisa. Se a pessoa tem algum problema a gente entende, mas a pessoa não quer trocar do nada”, diz a mulher. E agora que ouvi com calma estou começando a pensar que pode haver alguma coisa de interessante nisso que já chamei de nada.

Tão... tão... tão...

O que chama minha atenção nesse trecho é a ideia de que só uma “síndrome” ou outro problema podem servir de justificativa minimamente plausível para uma decisão tão... tão... tão... Me faltam palavras. Uma decisão tão normal? É isso: uma decisão normal e não necessariamente carregada de egoísmo, como dá a entender a acusadora. Afinal, não sei os motivos que levaram a moça a tomar essa decisão tão... tão... tão... trivial. Talvez ela tenha pagado a mais por aquele lugar. É uma possibilidade, ora! Talvez ela quisesse admirar a paisagem pela janelinha.

Por que ela?

De talvez em talvez, eis que me pego perguntando: por que ela? Por que não o passageiro da frente ou de trás? O que havia de tão especial naquele assento do avião? Sei que essa pode parecer uma dúvida à toa, mas garanto que não é. Acontece que a escolha aleatória de um alvo que poderia, sim, ter sua vida destruída, ainda mais nesta nossa Era do Cancelamento, chega a dar um frio na espinha. No lugar dela, poderia ser você – já pensou?

Tsc tsc tsc tsc

O vídeo, aliás, continua justamente com essa ameaça. “Tô gravando a tua cara”, diz a mulher, que explica: “Porque você não tem empatia com as pessoas. E isso é repugnante. Século XXI e a pessoa não tem empatia com uma criança. Se fosse um adulto, tudo bem”. Deixa eu adivinhar. Você está lendo isso, balançando a cabeça e fazendo tsc tsc tsc tsc. Acertei?

Empatia para lá e para cá

Empatia, confesso, é uma daquelas palavras que chega a dar arrepio só de ouvir. Lembra na época da pandemia? Era empatia para lá e empatia para cá. Quem não usava as inúteis máscaras era acusado de falta de empatia. Já quem ficava trancafiado em casa, acompanhando a contagem dos mortos, era a própria encarnação da empatia. A tal ponto que a empatia perdeu todo o sentido.

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Pode dicionarizar

A palavra deixou de significar “se colocar no lugar do outro” - o que é muito nobre, louvável, admirável e digno. Agora o significado da palavra é: “se colocar no lugar do outro para que ele faça o que eu quero e considero o certo e agora, senão te cancelo!”. Pode dicionarizar e começar a escrever sobre a “Falta de Empatia Sistêmica”.

Marra, birra e ameaça

No caso da moça que foi pega para Cristo nessa história, quem garante que ela não se colocou no lugar da criança e por isso mesmo tomou a decisão de não ceder o lugar, a fim de ensinar ao filho e à mãe a dura lição de que, nesta vida, nem sempre conseguimos o que queremos, na hora e do jeito que queremos? Muito menos assim, na base da marra, da birra e da ameaça.

Geração miojo

Resultado da querela: a moça que se recusou a dar o lugar à criança está ficando famosa – se bem que não sei dizer se isso é bom ou ruim. Além disso, o caso chamou a atenção para essa gente podre de mimada, que acha que tem direito a tudo e que não deve nada a ninguém. Uma geração não por acaso chamada de miojo, porque quer todos os seus caprichos satisfeitos em no máximo três minutos.

A base vem forte

No final das contas, até que esse nada vezes nada elevado a nada rendeu um texto bom, né? Tanto que eu, que não dava nada pelo caso quando comecei a escrever, agora estou quase agradecendo por esses 38 segundos que são um verdadeiro retrato da nossa decadência e incapacidade de transmitir bons valores para as gerações futuras. A base vem forte, como se diz ironicamente.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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