Começo a escrever este texto sabendo que ele não vai envelhecer bem. Ao chegar lá embaixo, no ponto final, é bem possível, até provável, que todas as palavras aqui encadeadas tenham já perdido o seu propósito. Afinal, vivemos tempos velozes, insuportavelmente dinâmicos e tumultuosos. Tanto que uma calmaria como a que testemunho no meu barquinho a deslizar no vazio azul do mar chega a incomodar (ar, ar, ar).
Meu espírito implora por águas tranquilas. Meu intelecto algo deformado pelas redes sociais se incomoda com elas. Quero ondas, preciso de ondas. Vislumbro o horizonte à procura das ondas. Talvez até de um maremotinho, mas só pelo bem da emoção, nunca da destruição. E, assim, vivo (vivemos) num estado permanente de ansiedade, como se este bote salva-vidas já meio murcho estivesse prestes a virar.
Ainda agora, refletindo sobre a aparente calmaria que se abate sobre o noticiário, sem uma declaração daquelas de deixar todos indignados, de despertar palavras que perderam o sentido original, como “inaceitável” ou “inconcebível”, meio que imaginava e meio que lembrava como era a vida antes – antes de ter de me esforçar diariamente para manter a cabeça para fora desse oceano de informações.
O homem comum, mesmo o mais esclarecido e bem-informado, não vivia como hoje, semiafogado em notícias umas mais outras menos relevantes. Então no que pensava o homem depois de ler seu jornal à mesa do café? Será que passava a manhã toda, talvez o dia todo, digerindo a manchete ou a notícia do pé da página que tanto o emocionou? Será que ia ao trabalho pensando no que o Fernando Sabino tinha escrito? Ou tentando
Como este homem, praticamente um neanderthal para o observador contemporâneo, lidava com os escândalos que volta e meia apareciam nas manchetes dos jornais? A quem ele recorria para expressar sua raiva, indignação, revolta? Onde ele expressava aquela sua observação afiada e supostamente cheia de wit, aquele trocadilho ferino, talvez um apelido maldoso, aquela opinião sucinta sem a qual o mundo não é capaz de continuar girando?
Penso no meu pai, que chegava do trabalho, jantava e ia para diante da televisão. Pontualmente às 20 horas começava o telejornal. E só então ele ficava sabendo do que acontecera naquele dia. Morreu Fulano e ele não expressou imediatamente sua tristeza por aquela perda. Até porque não tinha como. Collor confiscou a poupança, todo mundo estava falando disso na fila do banco, então é verdade mesmo – e não havia nada o que ele pudesse dizer a respeito. Seu time do coração perdeu de goleada e ele não pôde dizer ao técnico que era só recuar o Zarolho (meio-campo).
Meu pai ia dormir o sono tranquilo de quem, no dia seguinte, tinha de trabalhar para pôr comida à mesa. Duvido que ele se revirasse na cama só porque um médico deu um abraço numa trans assassina, a Anitta se posicionou quanto à agropecuária ou um escritor qualquer o xingou de nazista.
Sempre houve quem mandasse cartas para os jornais. Mas a carta tinha de ser escrita à mão ou à máquina de escrever. Era preciso ter papel por perto. E envelope. E selos. Era preciso ir até uma agência dos Correios ou entregar para o carteiro. Dois, três dias se passavam até que, com sorte, a carta chegasse ao destinatário, junto com tantas outras palavras de pessoas que não podiam, simplesmente não podiam!, ficar caladas diante da situação xis.
Quando, por fim, a opinião (equivalente hoje a um tuíte lépido e fagueiro) era publicada no jornal, devidamente editada, desbastada de seus palavrões e eventuais erros de ortografia, gramática ou datilografia, a notícia, antes uma onda ameaçadora, já tinha feito o estrago que era para ter feito e quebrado na praia.
E o mundo seguia seu tranquilamente seu curso. Com corruptos corrompendo e sendo corrompidos, com deputados aprovando leis esdrúxulas, com gente matando e morrendo, com incêndio e enchente, com celebridades inventando alguma moda para aparecer. Essas coisas todas que hoje nos levam a sacar o celular, abrir o aplicativo do passarinho e disparar um petardo qualquer contra a realidade.
Hoje o dia está, para mim, tranquilo. Embora há quem possa considerá-lo, veja só!, modorrento. Se até aqui o presidente disse algo “inconcebível”, uma daquelas coisas que gera cem mil tuítes raivosos e outros cem mil de aplauso, fora os memes, as hashtags, as ânsias de vômito, as amizades desfeitas, as frases de efeito, os trocadilhos toscos e os xingamentos, bom, a fala “inaceitável” me escapou. Até porque eu estava aqui ocupado, vivendo.
Mas vou correr agora para publicar este texto e rezar para que você o leia no tempo certo, isto é, antes da mais recente polêmica, digo, onda a tentar afogá-lo nesse mar poluído de ideias descartáveis, de fatos de plástico, de verdades que se dizem biodegradáveis na embalagem, mas que se revelam mentiras nas quais se enroscam as baleias do nosso pensamento, tadinhas.
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