Um homem morreu. Renato Oliveira, este era o nome dele. Funcionário de um frigorífico, ele era casado e tinha dois filhos. Para todos os efeitos, porém, Renato Oliveira virou apenas uma estatística da trágica, mas normalizada, violência urbana brasileira. Um número entre dezenas de milhares. Ou, na melhor das hipóteses, um quadro macabro que reforça o imaginário de desespero e impotência do brasileiro: a do homem que morreu enquanto dormia, no ônibus, a caminho do trabalho, durante uma troca de tiros entre policiais e traficantes.
Ah, se vale!
E, no entanto, era um homem, o Renato. Era uma vida. Um brasileiro com sonhos e alegrias, mas também mágoas e arrependimentos. Não é preciso ter conhecido Renato para saber que, dia após dia, ele vislumbrava um futuro. Às vezes pessimista, às vezes otimista. Gosto de pensar que às vezes Renato ignorava a pobreza que o cercava e, mirando o céu azul demais e a esposa e os filhos, dizia de si para si que a vida vale a pena. Ah, se vale.
“Não interessa”
O problema é que Renato não “morreu na contramão atrapalhando o tráfego” para nenhum jênio da música. Tampouco a vida daquele homem, agora morto, é capaz de inspirar os sonolentos e acomodados roteiristas do cinema nacional. “Morreu indo trabalhar, contribuindo para a manutenção do sistema capitalista opressor”, imagino um deles, aquele gordinho de cabelo azul, dizendo. “Era homem e talvez fosse até conservador. Pecado dos pecados, talvez tivesse até votado numa monstruosidade política de extrema direita. Não interessa”.
Indiferentes & distraídos
Má notícia: não interessaria nem se fosse o contrário de tudo isso. Nem se estivesse vestindo uma camiseta com a carona feia do Lula. A esta altura, nem se tivesse sobrenome de grã-fino e se a bala perdida tivesse atingido um carro de luxo, e não um mero coletivo. Porque estamos indiferentes e distraídos. Indiferentes porque distraídos – e nada disso se pode pôr na conta dos políticos, dos influencers e até mesmo dos artistas adestrados para falarem de mé e de muié, mas não da vida que é um moinho e que acaba assim, pá pum.
Marçal, DPVAT, novela
A indiferença e a opção pela distração constante são todas nossas. Minha e sua. Nós que, enquanto Renato deixava de ser o colega de trabalho que ficou de trazer o pão, a mortadela e o refrigerante para se transformar apenas no Homem Morto desta crônica, discutíamos — o quê? Ah, lembro bem e a Internet ajuda. Na manhã daquela quinta-feira, dia 24 de outubro, discutíamos a sabatina de Pablo Marçal com Guilherme Boulos, a rebeldia de alguns governadores contra o DPVAT de Lula e a novela da EBC.
Cúmplices?
Quero, com isso, dizer que somos cúmplices da morte de Renato Oliveira? De jeito nenhum! É pior do que ser cúmplice. Estou dizendo que somos indiferentes. E somos indiferentes, repito, porque estamos distraídos. Porque estamos ocupados demais humilhando adversários em debates, apontando as incoerências no outro, sempre no outro, e ostentando nossa razão que é sempre maior do que a do meu semelhante, aquele burro.
Dilexit nos
Somos indiferentes também porque perdemos o nosso coração. Por falar em coração, eis o que o papa Francisco diz em sua bela encíclica Dilexit nos, referindo-se ao sofrimento causado pelas guerras: “Descarregar a culpa nos outros não resolve este drama vergonhoso. Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração”. E quem ousaria dizer que o papa está errado? Pergunta meramente retórica, claro.
Quem o papa pensa que é?
Qualquer um ousaria porque, primeiro, falar em amor soa piegas aos nossos ouvidos intelectualizados, entupidos de racionalismo iluminista. Depois, quem o papa pensa que é para tirar meu direito de descarregar a culpa no primeiro petista ou bolsonarista ou isentão que cruzar a minha frente? E tem mais: esse papa aí é comuna, eu vi nas redes sociais. Por fim, dá licença que vou ver um meme que me mandaram aqui. Hahahahahahaha.
Incômodo passageiro (sem trocadilho)
Mas contrariar o papa, mesmo em questões de fé, é fácil. Qualquer troll consegue. Difícil é olhar para dentro de si e reconhecer que tem um coração há muito transformado em militante. Ou seria um coração zumbi? Um coração submisso aos ditames e às lealdades da ideologia. Ninguém ousaria encarar a verdade de que, para nós, os sobreviventes dessa batalha cotidiana, a morte gratuita de Renato Oliveira não passa de um incômodo passageiro (sem trocadilho) – como o que acomete os amigos de Ivan Ilitch ao saberem que a morte atrapalhou os planos deles para aquela noite.
Vexaminoso egoísmo
E não me venha com justificativas, porque é exatamente disso que se trata este texto: da nossa capacidade de tolerarmos o sofrimento alheio, a ponto de normalizá-lo. (Isso quando não cedemos ao impulso cínico de debocharmos da dor que nos irmana, mas que covardemente rejeitamos). Ou melhor, a ponto de ignorarmos o que o coração (é, você tem um!) nos grita para nos contentarmos com as mentiras sedutoras disso que parece razão, mas que não passa de um vexaminoso egoísmo.
Dedicado a Ivo Korytowski, que não me deixou ficar indiferente.
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