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Minha amiga Bruna Frascolla escreveu um belo texto sobre o café nosso de cada dia. Com ou sem açúcar?, pergunta ela, tirando várias conclusões interessantes a partir dessa preferência. Lendo o texto, contudo, lembrei que o café é também símbolo dessa mania contemporânea de transformar tudo em ritos seculares.
No princípio era o vinho. E só o vinho. Com a prosperidade econômica do Plano Real, a classe média, acostumada a beber Sang de Taureau (safra ontem mesmo), se fartou de “alemães de garrafa azul”. E surgiram os primeiros enochatos para criar regras que impusessem alguma ordem no caos. Beber vinho tinto em taça flûte? Te esconjuro!
Foi no começo do século XXI que comecei a atentar para o ridículo desses rituais seculares. Mas na época eu ainda não tinha percebido que eles surgiam para substituir os rituais que uniam nossos antepassados num desejo por ordem espiritual. Talvez porque os enochatos que me cercavam não eram tão chatos. E diziam que mais valia beber um vinho de colônia (tinto e açucarado) na companhia de uma bela mulher ou de amigos do que harmonizar bebida e prato perfeitos na mais desoladora solidão.
Com a falsa prosperidade dos governos petistas, os rituais seculares associados à mesa se diversificaram. De repente, para beber uma simples xícara de café era preciso conhecer os tipos e as torras e as formas de coar. Do vinho, então, nem se fala! Surgiram até vinhos cultivados sob determinada influência astrológica. Afinal, todo mundo sabe que Carménère não combina com Sagitário.
Não demorou para os rituais invadirem também o mundo das cervejas. Eu, que sou muito distraído ou lerdo mesmo para certas coisas, quase fui linchado uma vez por me servir uma simples Brahma a −273.15°C no copo de requeijão – aquele com um trincadinho de nada na borda, sabe? - diante de um connoisseur.
Curioso notar que, em muitos desses rituais, os acessórios são mais importantes do que o produto que se consome. O bojo da taça é mais importante do que o vinho. A quantidade de sílica no copo é mais importante do que a cerveja. A marca da meia que está servindo de coador improvisado é mais importante do que o café.
E não adiantou gênios como Jeffrey Steingarten esclarecerem, por exemplo, que a diferença entre o velho e bom sal Cisne que você tem na prateleira e o sal rosa do Himalaia pelo qual você pagou um rim é absolutamente nenhuma, porque é tudo cloreto de sódio e a língua humana é incapaz de distinguir diferenças significativas nos cristais de NaCl. Em se tratando de consumir ritualisticamente produtos de luxo, as pessoas são inflexíveis e pagam o quanto for preciso para se sentirem especiais.
Como não poderia deixar de ser, esses rituais deram origem a toda sorte de ortodoxia. Que, por sua vez, deram origem a heresias as mais variadas. Não decantou aquele Primitivo di Manduria? Fogueira nele! Deixou a água ferver para passar o café?! Degredo para a Ilha dos Sem Paladar Apurado! Bebeu uma “cerveja de milho” fabricada por um grande conglomerado estadunidense em vez de prestigiar o Tonhão (nome real Jean-Philip), que cultiva o próprio lúpulo adubado com casca de ovo caipira em húmus da Ilha de Páscoa? Guilhotina!
Muita gente ganhou e ainda ganha dinheiro com essa gourmetização do cotidiano. Nada contra. Se há quem venda a ideia de que você só pode acender um charuto cubano com fósforo fabricado com raspas de sequoia com toques de guano de Nauru é porque há quem acredite que será uma pessoa imensamente mais feliz e realizada se puser a mão no bolso a fim de cumprir o ritual o mais puro possível. Paciência.
O que me incomoda (no sentido de “desperta o meu interesse nas horas mais inapropriadas”) é perceber como esses rituais surgiram para preencher materialmente um vazio que nada tem a ver com saciar a fome e a sede, com memória e gratidão. E se firmaram como uma forma de ostentar não só dinheiro, mas também um conhecimento técnico que é um fim em si.
Como se o café semidigerido por um jacu (o pássaro; não a gíria curitibana), só por ser mais caro, raro e fedido, fosse capaz de substituir a transcendência momentânea do preto retinto da vó Odelair - aquele “forte, puro, brasileiro/ faz questão que o povo inteiro/ dê um breque pra tomar um cafezinho”.