Ruy Castro: ai, que saudade da briga entre Ludmilla e Anitta

Aqui no isolamento obrigatório causado pela pandemia de Covid-64, ouço as pessoas virtuais batendo panelas virtuais nas janelas também virtuais e me lembro com saudade de um tempo que não vivi: o tempo em que o único ruído a embalar a solidão de uma pandemia era a batida crua do funk poético das eternas inimigas Ludmilla e Anitta.

Por coincidência, naquela época também vivíamos uma pandemia causada por um coronavírus novo que levou as pessoas a ficarem em casa, onde elas sobreviviam à base de tédio e uma dieta não-vegana. A história diz que o vírus da chamada Covid-19 foi inventado nos laboratórios do imperialismo estadunidense, mas corre à boca pequena a história de que não foi bem assim e que o vírus teria surgido na China. Mas esse é um daqueles mistérios que jamais serão solucionados.

A situação da Covid-64 (sabemos, reconhecemos, agradecemos e até pedimos desculpas adiantadas por qualquer coisa que possa porventura quem sabe ofendê-lo) é diferente. Essa praga abjeta foi inventada por terroristas capitalistas que tentam abalar as estruturas do Grande Reino CHAZ, onde vivemos em paz e harmonia desde que nossos guerreiros conseguiram estabelecer a Democradura dos Oprimidos, em 2032*. Por sorte nosso muito esclarecido rei Oberlin II já está doando seu sangue ideologicamente puro para a fabricação de uma vacina.

Mas onde é que eu estava mesmo? Ah, sim. Ludmilla e Anitta - das quais o leitor provavelmente nunca ouviu falar. Há quem reclame dessa minha nostalgia pelo som cristalino, a melodia exuberante, a harmonia refinada e os palavrões aveludados do funk brasileiro de 2020**. Deve ter sido algo que herdei do meu bisavô, em cuja homenagem fui batizado. O mais incrível é que muitas pessoas daquela época obscura torciam o nariz para o funk, preferindo muitas vezes ouvir um ritmo opressor, machista e sexista chamado “roque”.

Ludmilla e Anitta, infelizmente (mas justamente) canceladas depois que a Lei de Pureza Trans na Música entrou em vigor, em 2033, protagonizaram, naquele ano remoto em que o Brasil ainda era uma federação governada pelo Inominável, uma briga que, dizem os historiadores do Ministério da Verdade, foi tão tão tão importante para a vida dos brasileiros (povo primitivo que habitava a região) que eles, durante meses, saíram às ruas munidos de rudimentares caixas de música JBL para travar a chamada Guerra Luditta, também conhecida como A Única Guerra em que os Dois Lados Foram Perdedores.

Imagino a cena e meus olhos marejam, embora isso seja contra a lei. De um lado, a turma de Ludmilla cantando o clássico “Cheguei chegando, bagunçando a zorra toda/ E que se dane, eu quero mais é que se exploda”. Do outro lado, a turma da Anitta cantando os versos imortais “Vai, malandra, an na/ Ê, tá louca, tu brincando com o bumbum/ An an, tutudum, an na”. E pensar que tudo isso começou por causa de uma discussão qualquer que se perdeu para sempre no grande pogrom cultural da nobilíssima Insurreição da Insignificância de 2027.

O que me leva a um dia de sol de 2035, quando saí de casa para permitir que os agentes do antigo Ministério do Bom Gosto entrassem em minha casa a fim de terem certeza de que, como bom cidadão, eu tinha as paredes limpas e as estantes vazias de livros, discos ou quaisquer outras coisas capazes de ofender meus semelhantes num raio de 1000km.

Mas essa é outra história.

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* Nota do editor: Por causa da idade avançada, Ruy Castro Bisneto usa equivocadamente a velha datação cristã. Pelo erro, pedimos desculpas.

** Pedimos desculpas novamente. E, para poupar o seu e o nosso tempo, pedimos desculpas por toda e qualquer referência à velha datação cristã.

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