Foi com algum espanto, para não dizer decepção, que li a crônica “Saída para Trump: matar-se”, em que Ruy Castro diz, sem nem uma pitadinha da elegância que lhe é característica, que Donald Trump deveria se matar. E Jair Bolsonaro deveria imitá-lo. “Para o bem do Brasil, nenhum minuto sem Bolsonaro será cedo demais”, terminava o panfleto indigno do autor, mas digno do Prêmio Hélio Schwartsman de consequencialismo.
Castro (cujo bisneto fictício já figurou nestas páginas falando de funk) compara o suicídio de Trump (e, por extensão, de Bolsonaro) ao de Getúlio, que teria transformado o ditador do Estado Novo num mártir do próprio ego. Ele imagina as potenciais viúvas de Trump e Bolsonaro como as viúvas do getulismo, que ignoram as prisões, as torturas, as perseguições do fascistinha tupiniquim, preferindo exaltar feitos como a CLT e outras excrescências.
Não consigo alcançar o nível de indignação paranoica que leva uma pessoa a arriscar todo o seu legado intelectual numa crônica, a ponto de defender que um ser humano se mate com um tiro no coração (pelo efeito simbólico). O raciocínio de que a ação política e até mesmo as palavras tortas de um líder sejam mais importantes do que o ato de respirar e comer e rir e dormir é algo que me escapa. Ainda mais vindo de alguém como Ruy Castro, que sempre transbordou uma mistura de inteligência e leveza muito próxima da ideal.
O mais triste desse episódio é que, como toda tentativa de suicídio, a crônica de Ruy Castro soa como um pedido de ajuda do autor. Quer ele que o abracemos em sua indignação desesperada? Ou que nos solidarizemos com uma visão de mundo (a meu ver pequena) que põe a culpa por todos os nossos males em indivíduos que acreditamos (equivocadamente) ter um poder absoluto? Ou será que o que Ruy Castro quer é que seu desejo perverso seja realmente levado a cabo e ele entre para a história como o Homem Que Fez Fulano Se Matar?
Seja lá o que for, dá pena ler a crônica de Ruy Castro. Ao chegar ao ponto final, a sensação para mim foi a de encontrar o bom texto, aquele que antigamente colocávamos a serviço da informação, da verdade e de outros valores nobres, caído no chão, os pulsos abertos em mais uma tentativa vulgar e frustrada de estudar empiricamente aquilo que Camus chamou de o único “problema filosófico verdadeiramente sério”.
Por que ainda mantenho uma conta no Twitter
A indignação extremada de Ruy Castro, essa revolta capaz de nublar o talento e anular a graça, encontra eco no niilismo inerente ao progressismo contra o qual Trump, o Abominável, se posiciona. O curioso é que essa mesma indignação extremada é capaz de contaminar os que lutam contra o progressismo niilista. No final das contas, portanto, tudo o que resta é o desespero impotente.
Aos indignados & revoltados de plantão, irmanados nesse niilismo necrófilo, restam as palavras da escritora Etty Hillesum, a “Simone Weil judia”. Assassinada em Auschwitz com apenas 29 anos, Hillesum foi mais um entre milhões de cadáveres, produto do eugenoconsequencialismo (me deixa que acordei neologista) suicida de Adolf Hitler – aquele mesmo do bigodinho, e cuja maldade ainda está distante da do homem alaranjado ou do que fala “talquei”.
Palavras que, para o bem da minha sanidade mental nesta segunda-feira de chuva, foram compartilhadas pelo escritor Rodrigo Duarte Garcia no Twitter, em meio à eterna guerra de insultos, ameaças de debandada para o Parler e um ou outro vídeo de gatinho. Fico imaginando se Ruy Castro teria coragem de expor sua “teoria da virtude do suicídio alheio” depois de ler o que escreveu uma vítima real de crimes reais de um tirano real – e não uma vítima emocional de bazófias ditas por um bufão.
É a Ruy Castro que ofereço as palavras de Hillesum, escritas no diário que ela nos legou. Mas não só a ele. Eu as ofereço também a todos os que diariamente se descabelam diante do ícone do passarinho azul. Todos os que vivem apontando a imundície alheia (entre os quais me incluo) sem jamais refletir sobre a sujeira que se acumula todos os dias nos cantos cheios de musgo da nossa alma:
“A imundície dos outros está também em nós. E eu não vejo nenhuma outra solução, nenhuma solução, mesmo, que não seja olhar para dentro e arrancar tudo o que há de podre em nossa alma. Eu não acredito que possamos corrigir qualquer coisa no mundo exterior que não tenhamos ainda corrigido em nós mesmos. A única lição que essa guerra nos ensinou é procurar dentro de nós mesmos, e não em outro lugar”.
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