São raras as minhas noites de insônia. Esta é uma delas. Estou olhando para o teto há mais tempo do que gostaria. Pensando em como voltar a pegar no sono, prestando atenção aos barulhos que vêm da rua, tentando adivinhar o que grita um bêbado lá embaixo. Repetindo uma bobagem que escrevi há muito tempo: Deus me livre ser a causa da insônia alheia!
Desisto de reconquistar o sono que parece para sempre perdido. Melhor me levantar e fazer algo de útil. Escrever, por exemplo. O rádio-relógio supermodernoso que se chama Alexa marca 1h28. Ao meu lado, a mulher ronca para na manhã seguinte jurar que não, de jeito nenhum, você é que ronca, um dia eu vou gravar e mostrar para todo mundo, aí você vai ver só o que é bom. Aos pés dela a Catota dorme o sono angelical dos gatinhos.
Ao perceber minha movimentação, o ronco da mulher cessa. Ela abre os olhos, mas não diz nada. Explico baixinho (para não acordar a Catota) que estou com insônia, que alguém me disse algo que não desceu bem, que vou me levantar e escrever. Ela se vira e logo volta a roncar. Ao me ver saindo da cama, a Catota também abre os olhos, boceja longamente, dá duas lambidas para ajeitar uns pelos despenteados no dorso, cobre o rosto com a patinha e volta a dormir.
Pé ante pé, eu vou para o escritório escrever alguma coisa. “São raras as minhas noites de insônia”, começo.
Cisão
Xk[ç0l9k88888888888888888888hhhhhhhhhhhhhhhhhhh6666f. Xi, parece que alguém aproveitou meu descuido ontem à noite para mandar uma mensagem criptografada para eventuais felinos que possam estar lendo este texto no colo de seus donos.
De qualquer modo, nesta madrugada escrevi os quatro parágrafos iniciais deste texto e fui tratar daquilo que me provocou a insônia: um versículo bíblico que muita gente usa para justificar uma guerra espiritual que, dizem essas pessoas, não se vence com a misericórdia. Está lá em Mateus 10:34, quando Jesus diz que não veio trazer a paz, e sim a espada.
A ideia de um Jesus revolucionário e belicoso não resiste a uma releitura sonolenta no meio da madrugada. É tudo muito óbvio e claro, o que torna a manipulação política do versículo ainda mais abjeta. Logo depois de dizer que não veio trazer a paz, e sim a espada, numa aparente contradição com todos os seus ensinamentos, Jesus explica que haverá cisões nas famílias cujos membros, não todos, O aceitarem como a Verdade. É a vinda dEle, com Sua mensagem pacífica, de amor, misericórdia e perdão, o que ocasionará a separação entre os que se declararão por Ele e os que se dirão contra Ele.
Esse é um fato desde então facilmente observável. E não só entre familiares. Agora mesmo é bem possível que esteja havendo uma cisão profunda (mas jamais intransponível) entre mim e o leitor que se deixou levar pela tentação de ser mais justo do que o Justo. Não que eu seja o seguidor perfeito, longe disso. Mas, porque um dia decidi abrir os ouvidos, aqui e ali O ouço me aconselhando a não dar vazão ao mal que também me habita.
Que a palavra do próprio Cristo seja usada para justificar ódio e violência não me espanta. De ardis o ardiloso entende. O que me espanta é a facilidade com que muita gente cai nessa exegese torta e a usa para camuflar sentimentos podres – como se a eliminação real ou simbólica dos adversários fosse um caminho seguro para a santidade. Não é.
P.S.
Ao lado do computador, o caderninho de anotações está aberto e com as pontas roídas por vocês-sabem-quem. Ali, entre anotações rápidas sobre Bolsonaro, Deltan Dallagnol, PEC dos Precatórios e Barroso, encontro um raciocínio apressado e emoldurado por um retângulo de rabiscos: “se você pretende vencer a tal de guerra espiritual usando o ódio é porque o inimigo já venceu”.
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