Era um sábado, há algumas semanas. Eu estava tranquilamente tomando meu café e planejando um dia inteiro de merecido e necessário ócio. Depois de dar uma volta no quarteirão para tentar sintetizar um pouco de vitamina D, pretendia passar o dia montando um quebra-cabeça. Mas aí tomei a estúpida decisão de ligar o celular, clicar na rede social e me deparar com um tuíte que acabou com meu dia.
Dizia o tuíte muito simplesmente que estava na hora de cancelar Ferris Bueller – o personagem da melhor comédia de adolescente de todos os tempos, “Curtindo a Vida Adoidado”. Por quê? Em tempos de redes sociais as pessoas não sentem a menor necessidade de explicar os motivos. Os 280 caracteres do Twitter são uma abundância, porque o raciocínio das pessoas não requer tantas palavras, conceitos, contextualizações, teses, antíteses, sínteses. É o que é e pronto.
Dizia o tuíte, pois, que Ferris Bueller, interpretado magistralmente por Matthew Broderick naquela que é provavelmente a maior obra-prima de uma fábrica de obras-primas chamada John Hughes, é um personagem tóxico e um bully – palavrinha importada que podia muito bem ser substituída por nosso velho conhecido “Valentão do Fundão”.
Ao ler aquilo, encerrei na hora a amizade com a pessoa que retuitou a opinião herege. Tudo tem limite. A pessoa pode defender o Lula, por exemplo. Pode tentar argumentar que Stalin só queria o bem dos camponeses soviéticos. Pode dizer (como disse, aliás) que Suplicy é o político mais puro que existe no Brasil. E, às vezes, até porque compreendo esses arroubos que nos fazem deixar registradas umas sinapses meio tortas que nos escapam no sábado à noite, pode fazer alguma associação esdrúxula entre RPG, Xuxa e a filosofia de Camus.
Mas falar mal de Ferris Bueller está fora de cogitação. Porque Ferris Bueller não é apenas o melhor personagem do melhor filme de adolescência de todos os tempos. Ferris Bueller é, por vias tortas, um formador de caráter. Ou você nunca quis ter um amigo que soubesse escolher o dia perfeito para burlar o "sistema" e, assim, construir uma memória que ecoará pela eternidade.
Hedonismo? Epicurismo? Estoicismo? Não! É Ferrisbuellerismo mesmo.
Ode à vida
Aqui vou precisar me conter para não escrever uma tese de doutorado sobre o filme a que assisti mais de 30 vezes. Mas desafio qualquer doutor em semiótica ou toxicologista a encontrar algo no roteiro que seja outra coisa que não uma ode à vida. Uma ode a um só dia perfeito. Que também é uma ode à amizade, ao amor. E uma ode ao risco – que é algo que a geração que quer cancelar Ferris Bueller simplesmente não compreende. Até porque não tem nada a perder.
Ao se fingir de doente para passar um dia na companhia da namorada e do melhor amigo, Ferris Bueller vê a vida como ela deveria ser vista às vezes: do alto. Hughes, aliás, transforma isso magistralmente em imagem ao colocar os personagens no topo do prédio mais alto de Chicago. De lá, as pessoas na rua parecem formiguinhas silenciosas, cada qual cumprindo seu papel no mundo. Se a poesia desta cena lhe escapa, amigo, volte duas casas e dê uma folheada no velho e bom Thoreau.
Mas não estou aqui para intelectualizar "Curtindo a Vida Adoidado" e seu protagonista, Ferris Bueller. Estou aqui mais para enaltecer a simplicidade da juventude, hoje perdida entre mil e uma causas políticas. Bueller, aliás, é só um curioso que não está nem aí para os “ismos”, como ele mesmo diz no começo do filme. Ele só quer almoçar num restaurante chique, assistir a um jogo de beisebol, visitar um museu, sentir o vento no rosto a bordo de uma Ferrari. Por um dia, um único dia apenas, ele quer se sentir vivo, nem que para isso tenha de suportar algumas semanas de castigo.
Ferris Bueller é a personificação de algo que esses moços, moças e moces da cultura do cancelamento desconhecem: a relação entre risco e recompensa. Uma relação que até aqui moveu o mundo, dando origem a homens bem-sucedidos e também a fracassados. Mas nunca a homens inertes que passam o dia comendo batata frita no sofá, os dedos ensandecidos percorrendo as redes sociais, falando da importância de ficar em casa, de se proteger, senão o coronavírus te pega, te pega daqui, te pega de lá. Só há um tipo de gente que foge do risco: o covarde.
Ferris Bueller é a rebeldia virtuosa de alguém que sabe que o verdadeiro aprendizado não vem dos punhos cerrados gritando slogans vazios para uma plateia de zumbis. O verdadeiro aprendizado, e a beleza da vida, está em invadir um desfile para agradecer aos alemães por toda a alegria, mas também por toda a dor (all the joy and pain) – duas coisas sem as quais é difícil encontrar motivo para viver. E depois pôr a cidade inteira para dançar aos som dos Beatles. Sem que haja por trás disso qualquer pauta política.
Para usar o mote falso que confere um quê de humor negro ao filme: Salvem Ferris! Salvem sua irresponsabilidade ousada, inteligente, engraçada, inconsequente. Salvem sua capacidade de arriscar, de ganhar num momento para perder no outro. Salvem seus pecadilhos sem vítimas. Salvem Ferris! Antes não haja mais nada que valha a pena ser salvo.
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