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Todo dia acordo ansioso para escrever minha crônica. Digo “ansioso” no bom e no mau sentido. No bom porque é uma delícia poder escrever para a audiência qualificada da Gazeta do Povo; no mau porque tenho essa preocupação besta de levar um pouco de alívio para o leitor carente de uma risadinha em meio a tanta notícia ruim. Mas hoje... Hoje não vai dar. Porque preciso compartilhar minhas preocupações.
Outro dia escrevi que a pandemia tinha, na prática, acabado. E a gente nem para celebrar isso. Aproveitei para tascar uma paráfrase de T. S. Eliot no meio e dizer que a pandemia acabou não com um estrondo, e sim com um silêncio burocrático. Bom, hoje venho aqui para anunciar outro momento histórico que não ganhou as manchetes dos jornais. Pelo menos não da forma estrondosa como eu imaginava. Acabou, ou melhor, morreu (fica mais dramático) a Democracia.
“Ai, que exagero!”, diz alguém, afetando uma serenidade que me falta. Será mesmo? Semana passada tivemos a “desordem informacional”; depois, o “cala-boca do bem” e a figura jurídica da “absolvição legal por arrependimento”. E ainda agorinha o ministro Benedito “Tapinhas” Gonçalves, do TSE, proibiu a produtora Brasil Paralelo de exibir um documentário sobre a facada sofrida por Jair Bolsonaro na campanha de 2018, o que até uma criança sabe que configura censura prévia e escancarada.
Desnecessário dizer que qualquer pessoa minimamente afeita às letras reconhece que é inconstitucional. Inconstitucionalíssimo. E se ao menos fosse o primeiro... e último. Mas não. Nas últimas semanas, o que se viu foi, com o perdão pelo lugar-comum indignado, uma enxurrada de decisões que afrontam as leis e usam argumentos os mais estapafúrdios do mundo para justificar o injustificável. Isto é, a militância e o voluntarismo do alto escalão do Judiciário.
Desmoronada essa palafita que chamávamos pomposamente de Estado Democrático de Direito, só nos resta perguntar o que podemos fazer para reerguer o barraco frágil, mas que era até limpinho – antes de ser invadido por uma súcia de toga. A resposta é desagradável. [Continue a ler por sua própria conta e risco]. Neste momento, o que podemos fazer é ter paciência, prudência e fé. [Eu avisei que a resposta era desagradável]. O que podemos nos esforçar para fazer é manter a serenidade.
Depois de agonizar por quatro anos, sofrendo dores lancinantes (outro clichezão proposital) a cada manchetinha que insiste em tratar a censura e o autoritarismo como "supostos", está morta a Democracia. Ironicamente martirizada por aqueles que juravam que só queriam defendê-la, tadinha. Mal sabíamos nós que juramento de quem faz o “L” não vale por...caria nenhuma. Uma turma que, agora, vai insistir em dizer que a defunta está mais viva do que nunca. Eles que, no final das contas, nunca foram com a cara da Democracia mesmo.
É uma circunstância que eu, em minha ingenuidade democrática, jamais poderia prever. Não, nem em meus delírios juvenis, quando via com admiração burra a luta da esquerda e imaginava essa “resistência” como um atalho heroico para a Glória. “Nunca mais teremos uma censura como aquela”, pensava eu. E não é que temos?! “Nunca mais teremos gente perseguida por defender ideias”, pensava eu. E não é que temos isso também?!
Só não temos ainda (ainda!) porões de tortura ou coisas do gênero. Ainda. Antes que você jogue as mãos para o alto e grite “oba!”, porém, sou obrigado a lhe dizer: tampouco temos instituições civis saindo em defesa das liberdades individuais. Pelo contrário, OAB e ABI estão com as mãos sujas do sangue azul da Democracia que um dia, reza a lenda, consideraram rainha.
Assim morreu a Democracia: não com um estrondo nem sob a melodia dos coturnos batendo ritmadamente no chão – como nos prometeram os professores comunistas. A democracia morreu discretamente. Tão discretamente que ainda há quem não acredite na morte dela. Mas morreu, a coitada. Cabe a nós, carpideiras com um mínimo de vergonha na cara, chorá-la. E, assim que o caixão baixar à terra, correr para proteger a mirrada e moribunda Liberdade que nos resta.
* A imagem que ilustra esta coluna é, por falta de definição melhor e mais ridícula, uma poesia concreta intitulada “O Limite das Quatro Linhas”, de autoria minha mesmo.
** Amanhã, com alguma sorte, voltarei a fazer rir neste espaço.