Nossa história começa como a abertura da série Mr. Bean. Sim, aquele sujeito desengonçado que te fez rir nos anos 1990 – e, se não fez, só lamento. É noite. Toca o sino. Um cachorro late. De repente, surge um facho de luz. Diferentemente do simpático personagem de Rowan Atkinson, porém, o ser fantástico da nossa história não cai do céu. Ele emerge do esgoto sulfúrico para, quase oitenta anos depois de ter estourado os miolos num bunker de Berlim, descobrir que é bom, é fácil, é aceitável, é normal ser nazista em 2023. Sim, estou falando de Hitler.
Do velho Adolfo que hoje, contudo, optou por outro nome social. Também está mais jovem, o Füher. O cabelo ele cortou e pintou com as cores da bandeira palestina; o bigode ele usa bem fininho, tipo canalha nelsonrodrigueano. Além da indefectível argola no nariz, pelo corpo Adolfo exibe tatuagens que são verdadeiros libelos das causas políticas que ele defende. E só não vou descrever a indumentária do sujeito porque o Departamento Jurídico me impede. Mas você é livre para imaginar. Por enquanto.
Magicamente, porque em imaginação tudo é permitido, nosso Mr. Bean racista, nacionalista, iliberal, antissemita, eugenista e, last but not least, socialista está no campus de uma universidade pública brasileira. Ao seu redor, adolescentes tardios cantam slogans antissemitas. Hitler, agora com o nome social vetado pelo Jurídico, não se aguenta e entra na roda. Tira o pé do chão, como se diz. Para um professor de filosofia a seu lado, ele pergunta o que está acontecendo e ouve palavras e expressões que não entende, mas que soam como música a seus ouvidos. “O que ser Agenda 2030? O que ser duguinisma?”, quer saber ele com um sotaque tão carregado que uma herdeira woke ali perto sai correndo, apavorada.
Logo Adolfo aprende (até porque esse é o ponto central desta crônica) que seu querido nazismo continua sendo execrado como símbolo de um mal absoluto. O que é ruim – para ele. Por outro lado, as ideias que compunham a abominavelíssima ideologia continuam mais vivas do que nunca. Para sobreviverem, contudo, essas ideias tiveram de tomar um banho de loja. De marketing digital, se preferirem. O antissemitismo virou apoio à carnificina do Hamas. O nacionalismo belicista e os delírios de superioridade racial viraram reafirmação heroica da intelectualidade. Ditadura virou democracia e, por consequência, censura virou... defesa da democracia. Eugenia virou “questão de saúde pública” e engenharia social virou empatia.
Já os Fühers da vez variam de lugar para lugar, mas estão em toda parte. Todos querendo transformar o mundo e moldá-lo de acordo com a sua vontade. Todos querendo impor ao outro sua ideia de um mundo perfeito. Todos se imaginando sobre estátuas equestres a serem veneradas pelos próximos mil anos. Todos odiando as infinitas manifestações da liberdade. Os Putins e os Bidens. Os Lulas e os Trudeaus. Os Xis e até as Gretas.
Nem te conto
De repente, no meio da manifestação, Hitler recebe um panfleto no qual lê, entre outras coisas, que os judeus usam o Holocausto para se fazerem de vítima. Ele ri. Só ri. Adiante, lê que os fãs da arte degenerada da música eletrônica ou do funk merecem morrer. Mais risadas. Risadas contidas, discretas, mas ainda risadas. Por fim, lê que Israel, por ser um Estado progressista onde o aborto é legalizado, tem mesmo é que ser destruído. Uau. Para ser sincero, até Hitler se escandalizou um pouco com essas partes do panfleto.
Aí, enquanto pensa no próprio triunfo, Adolfo ouve um rufar de tambores e vê desfilarem vários grupos identitários, cada qual com seu estandarte. O do punho cerrado. O da estrela de oito pontas, em cada uma delas uma flecha. O da estrela verde que certamente esconde um sigma maiúsculo (Σ). O da foice e do martelo – velhos conhecidos do Füher. E aquela que não posso descrever sem autorização expressa do Departamento Jurídico. Essa mesmo em que você está pensando.
Ao ver aquele espetáculo identitário, Hitler sente uma pontada de saudade de Nuremberg e da sua suástica pervertida. “Se eu soubesse que seria assim…”, pensou ele. E olha que, só porque o texto está acabando, Adolfo não teve nem tempo de publicar nada nas redes sociais e, assim, ganhar milhares, não, milhões de seguidores e likes e visualizações que validam sua psicopatia toda banhada em clichês politicamente corretos.
Agora nossa história vai terminar como começou. A mesma referência à série Mr. Bean. A mesma noite. O mesmo facho de luz. O mesmo dobrar dos sinos. O mesmo latido dos cães. O mesmo esgoto sulfúrico no qual agora mergulha Hitler, com a missão de relatar ao chefe dele a quantas andam as coisas aqui na superfície. Se o mal está vencendo o bem – e às vezes parece que está. Se as pessoas ainda temem a Deus e pregam aquela coisa ridícula de misericórdia e caridade. Ou se ele, o diabo, está sendo bem-sucedido com sua blitzkrieg de inveja e ressentimento, quando não puro ódio.
“Nefarious, nem te conto”, começa Hitler. E conta.
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