Nana, neném, que a Cuca vem pegar.| Foto: Pixabay
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Minha mulher abre a porta, se delicia com os carinhos rituais da Catota e me encontra no sofá. O celular na mão e os gestos razoavelmente rápidos para um homem de meia-idade me denunciam. “O que você está fazendo?”, me pergunta ela. Olho para a tela do aparelho e, um tanto quanto constrangido, leio em voz alta: “bandido, comunista e comprado: três palavras que mataram de vez a democracia”. Ela não diz nada e nem precisa. Sei que estou errado.

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Deixo o celular de lado e vou receber a mulher com a atenção que ela merece. Mas permanecem ali, pairando no ar feito duas fascinantes mariposas, as perguntas que às vezes acho que ignoro com mais frequência do que gostaria. Para que eu pretendia escrever uma análise dessas três palavras que aparentemente compõem uma ladainha contra o Estado Democrático de Direito? E por que insisto em acreditar que vivo num país livre, onde teoricamente eu poderia me divertir brincando assim com fogo?

Antes que você responda às duas perguntas retóricas, me adianto. Para o porquê não tenho resposta satisfatória. Fica para a próxima. Já o para quê é deveras complicado e merecia um texto só para si. Afinal, estamos viciados em reagir e (pior!) em registrar nossas reações para a posteridade. Quando, na verdade, não são necessários mais do que uns poucos segundos de reflexão para se concluir que a nossa reação impulsiva é absoluta e totalmente inútil.

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A mim e aos outros, de que serviria escrever que, a depender do tom com que se escuta o insulto, “bandido” pode ser interpretado como um afago deliciosamente jocoso? Para que dizer que, neste caso, o “comunista” perdeu todo o seu sentido econômico para virar sinônimo de “autoritário”? O que busco ao escrever que “comprado” de certa forma se aplica a todos nós que nos vendemos às facilidades do mundo – tanto as materiais quanto as intangíveis?

Brasil teórico

Me perco nessas reflexões e nem percebo que minha mulher já jantou, tomou banho e pegou no sono. Uma pena. Quero acordá-la para lhe dar razão, mas talvez seja melhor adiar o reconhecimento do bom senso feminino. Talvez amanhã eu lhe traga café na cama. Enquanto isso, fico aqui no semiescuro, bem quietinho, imaginando como seria a reação verdadeiramente democrática, suprema e nobre para esse episódio todo. Ou por outra: como seria a reação de um ministro do STF quase ideal no Brasil teórico.

A única reação admirável seria a não reação altiva e estoica. E neste momento estou sentindo que vou ter que citar “Hamlet”. Droga, não queria citar “Hamlet”. Mas já está tarde, amanhã acordo antes do nascer do sol e, no mais, para alguma coisa “Hamlet” tem que servir, não é mesmo? Então aqui vai: “Hamlet”. Leia ou assista ao filme do Kenneth Branagh e perceba como, diante da humilhação, do orgulho ferido, o certo é também o mais difícil: não reagir. Ou, se você almejar a Eternidade, oferecer a outra face. Serve para o principezinho mimado da Dinamarca, serve para mim, serve para você e serve para certas autoridades.

Se Alexandre de Moraes não tivesse feito nada, se aquelas palavras tivessem entrado por um ouvido e saído pelo outro, se os xingamentos tivessem se dissipado no ar quente do verão romano em vez de atingirem em cheio as fragilidades morais da excelência... Eu não me sentiria tentado a reagir e deixar registrada a minha reação. O que, cá entre nós, além de inútil é vulgar.

“Trabalhando a uma hora dessas? Apaga a luz. Vamos dormir”, acaba de me dizer ela aqui ao lado. Já está tarde mesmo. Apago a luz, ajeito o travesseiro e me encolho no edredon como se ele estivesse no útero materno. Antes de me entregar confiantemente ao sono plebeu dos justos, porém, me permito imaginar o sono atribulado e muito possivelmente induzido do minúsculo que se considera supremo. Sabendo que neste dia fiz meu melhor, mas invariavelmente errei, peço perdão. Outros não têm a mesma sorte. E zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]