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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Tá doido?!

Será que Alexandre de Moraes já leu este livro?

Ilustração de Fábio Moon e Gabriel Bá para a adaptação de "O Alienista" para os quadrinhos. (Foto: Reprodução)

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Assim que abri o velho exemplar de “O Alienista”, de Machado de Assis, fui logo sublinhando um trecho. Já disse em algum momento que gosto de vandalizar assim meus livros. Mesmo que jamais venha a consultar aquela citação novamente ou por mais que, em a consultando, não tenha a menor ideia do que me levou a sublinhá-la. Gosto da aparência de um livro todo riscado e no qual daqui a vinte anos alguém lerá “Alexandre de Moraes” sem ter a menor ideia de quem tenha sido o gajo.

“A ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é meu universo”. Este foi apenas o primeiro trecho sublinhado com a anotação hoje óbvia, mas que daqui a duas décadas parecerá um hieróglifo: “Alexandre de Moraes”. Cujo emprego único é o Estado democrático de direito (como ele o entende) e cujo universo se restringe àquele palacete feioso do STF. A partir daí, para mim o dr. Simão Bacamarte perdeu os cabelos e ganhou uma toga. E a causa da loucura se transformou na causa do Estado democrático de direito - com aspas, muitas aspas, por favor.

A obviedade da associação entre a frase machadiana e a realidade alexandrina deste início de século XXI me incomodou. Dei de ombros e segui com a leitura. Algumas páginas mais tarde, anotei um dos casos de loucura contado por Machado: “um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano”. À margem anotei que candidato ao hospício é quem se refere a Machado como “Bruxo do Cosme Velho”. E olhei em volta para ver se ninguém por perto tinha uma camisa-de-força.

Atenção, clipping do STF

Outra anotação de uma obviedade absoluta e um tantinho vergonhosa: “homem de ciência, e só de ciência, nada o consternava fora da ciência”. Aqui a primeira referência é o ministro que não se consterna com nada fora da sua cruzada antibolsonarista. Obviedade das obviedades, tudo é obviedade. A segunda referência talvez seja menos óbvia, e por isso mesmo tão profunda quanto uma piscina infantil: como foram e são ridículos os homens que, diante da pandemia de Covid-19, não se consternavam com nada fora da ciência. “Que nunca sejamos homens de uma coisa só!”, anotei à margem e, se não anotei, deveria ter anotado.

Ah, sim, outro trecho óbvio, mas necessário. Nele, Dona Evarista, a esposa do alienista, está de partida para o Rio de Janeiro. Machado de Assis assim descreve a cena: “E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simão Bacamarte alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade do regresso. Imagem vivaz do gênio e do vulgo! Um fita o presente, com todas as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras”.

A anotação à margem é: “Será que Alexandre de Moraes já leu este livro?”. Se a equipe de clipping do STF estiver lendo este texto, por favor, estenda a pergunta ao ministro. E aproveito para perguntar ao ministro Alexandre de Moraes se ele entende que, nessa alegoria aí, gênio é o conservador e vulgo é o progressista que “devassa o futuro com todas as suas auroras”. Assessor que por ventura estiver lendo, por favor repassar essa última pergunta também ao ministro Barroso. Obrigado.

Outro momento bom para a reflexão dos ministros do STF é quando Simão Bacamarte se dá conta do tamanho da sua empreitada insana de curar todos os loucos do universo. No caso, de Itaguaí. “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”, diz o alienista. E a essa altura o leitor, tanto o meu quanto o do Machado, já se deu conta do perigo que é dar poder a um homem obcecado por uma causa, seja ela a ciência ou o Estado democrático de direito, ambos com fartas aspas.

Aí em “O Alienista” o óbvio mais uma vez se realiza e Bacamarte começa a usar o próprio poder em proveito próprio. “O alienista dizia que só eram admitidos os casos patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer gérmen de prosperidade (...), mil outras explicações, que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública”.

Inversão de valores

Pensei, mas não anotei à margem porque a caneta tinha caído no chão e fiquei com preguiça de pegar: Machado de Assis previu o Twitter. E não deu a Simão Bacamarte a capacidade e ambição contemporâneas de calar a fértil imaginação pública. Tivesse conferido ao personagem esse super poder, Machado teria evitado, nas páginas seguintes, a rebelião que culmina com uma reflexão (óbvia) sobre o arbítrio, tanto do alienista quando do nosso calvo constitucionalista: “Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo são reclusos por dementes, quem nos afirma que o alienado  não é o alienista?”.

Tampouco eu tenho a ver com a ciência jurídica e política, mas, se tantos homens em quem supomos liberdade de consciência são reclusos por antidemocráticos, quem nos afirma que o antidemocrático não é o que diz mais agir para defender a democracia? Não à toa convém aqui mencionar outra obviedade que salta aos olhos: “O Alienista” é uma alegoria da Revolução Francesa, liderada por iluministas crédulos na utopia da razão e dispostos a usar de toda a violência necessária para impor os ideais de igualdade, liberdade e fraternidade – não necessariamente nessa ordem.

Simão Bacamarte cai em breve desgraça. Em sua defesa, evoca Deus e “os mestres”. Chega até a se oferecer em sacrifício. Talvez (e esta é uma interpretação que espero não ser óbvia, embora pareça) no final das contas o alienista conheça mesmo a alma humana a ponto de antever as ambições do líder rebelde e, por isso, saber-se seguro. “O barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da Câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí”, escreve um Machado de Assis insuportavelmente cínico.

Depois da rebelião, prevalece a paciência maquiavélica de Simão Bacamarte, tão corrompido por suas certezas que passa a considerar ainda mais loucos os que exibem qualquer vocação para a excelência ou a santidade. “Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em que predominavam esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices; outra de leais, outra de magnânimo; outra de sagazes; outra de sinceros; etc.”, lê quem chega a esta parte do livro e resiste à vontade de jogá-lo dramaticamente contra a parede. Seria óbvio demais falar aqui em “inversão de valores”?

Diabólico, Simão Bacamarte corrompe toda a cidade, que passa a ver o mal como sinal inequívoco de sanidade e o bem como marca de demência incurável. E é neste instante que a novela de Machado de Assis perde um pouco de contato com a nossa realidade. A não ser que você queira bancar o otimista e ler o que acontece em seguida como uma profecia. Porque, tomado pela vaidade do suposto autoconhecimento que faz dele o mais são entre os sãos, não resta ao alienista alternativa que não a de se trancafiar no hospício, entregando-se “ao estudo e à cura de si mesmo”.

Diante do que anoto à margem um comentário que certamente não vou entender na próxima releitura: “Quem sabe alguém, vendo-se como o maior defensor da democracia em todo o universo e além, não perceba nesse furor todo um quê de fascismo, de autoritarismo e até de totalitarismo e, em assim se percebendo, para o bem da sanidade geral, se recolha ao estudo e cura de si mesmo”. Fecho o livro e vou dormir exausto de tanta obviedade.

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