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Sábado à tarde. Sabe como é. Depois de limpar a casa, ir ao mercado, à loja de materiais de construção, à lavanderia, ao açougue, ao sapateiro, etc., eu e minha mulher nos deitamos para assistir a um filminho. Eu queria assim ver um Tarkovsky para relaxar. Ela prefere um Godardzinho básico. Na indecisão, optamos pela minissérie “Elize Matsunaga” (que tem subtítulo de conto de fadas, “Era Uma Vez Um Crime”), disponível na Netflix.
Não que o mundo cão me interesse. Ele tem uma lógica própria que me escapa e que, para o bem da minha própria sanidade, não tenho vontade alguma de compreender. A princípio, pois, meu interesse pela série é mais estético. Quero ver que personagens a produção decidiu expor e quais decidiu esconder, como será feita a edição, como o roteiro conduzirá o olhar do espectador até o desfecho que, neste caso, não é nada surpreendente.
Por precaução, assim que a série documental tem início, me levanto para esconder as facas da casa. Vai quê. Conhecendo bem como conheço a mente progressista do audiovisual brasileiro, desde a primeira tomada eram grandes as chances de a diretora Eliza Capai querer me vender a ideia de que Elize Matsunaga, assassina confessa do marido, o empresário Marcos Matsunaga, é na verdade uma vítima incompreendida da sociedade.
E é justamente isso o que acontece. Avançando e retrocedendo no tempo a fim de criar um clima de suspense inexistente, e também para reforçar a imagem benevolente de Elize Matsunaga, aquela que, não satisfeita em matar o marido, cortou-o em pedaços e saiu jogando as partes do corpo pelo interior de São Paulo, a série vende a narrativa de que Elize é assim uma espécie de bom-selvagem corrompida pelo capitalismo e escravizada pelo patriarcado.
Já nos primeiros minutos o espectador mais experiente percebe qual será o rumo da prosa. A série começa resvalando no abolicionismo penal ao defender as famigeradas “saidinhas”. Foi, aliás, numa dessas férias do encarceramento que os produtores tiveram acesso à criminosa para que ela contasse sua versão edulcorada dos fatos.
Com o avançar da história, minha esperança era a de que “Elize Matsunaga” (uma série de quatro partes) seguisse o padrão Netflix de apostar em personagens secundários bizarros, daqueles que dão um colorido à história sombria. Neste caso, a produção bateu na trave. Lá estão a jornalista deslumbrada, os advogados de olhos esbugalhados e o amigo excêntrico da vítima. Nada que chegue aos pés de “A Máfia dos Tigres”, porém.
O único que chega perto disso é o médico legista Jorge Oliveira, com seu visual recém-saído de “O Senhor dos Anéis” e sua visão de mundo, digamos, extravagante. Em certo momento, por exemplo, Oliveira diz que, como médico legista, você tem que perguntar ao cadáver que história ele quer contar. E confessa ter sussurrado ao que restava da cabeça de Matsunaga, pedindo a ele pistas. Antes disso, Oliveira já tinha se saído com uma pérola do humor necrológico: “As pessoas são mais bonitas por dentro do que por fora”.
Reação às escolhas alheias
Única personagem que destoa da fórmula farsesca e que confere um mínimo de dignidade ao suplício que deve ser ter na família uma assassina é a tia de Elize, Roseli Araújo. Exalando um estoicismo quase improvável, ela responde às perguntas com uma lucidez que o espectador não encontrará nas autoridades esclarecidas (advogados & jornalistas) que povoam a série. Infelizmente, essa é uma dignidade baseada num conjunto de valores conservadores que a produção não está interessada em explorar.
Nenhum apelo à comicidade involuntária ou ao melodrama canastrão, porém, consegue camuflar a intenção da série, que é a de retratar Elize como a mulher humilde que sobreviveu a um abuso sexual, virou prostituta “porque não há nada de mau nisso” e de repente, não menos do que de repente, se viu escrava do luxo, vivendo um suplício cinco estrelas, e do jugo do patriarcado. Uma mulher que, tadinha, que só queria ficar com a filha, com a cobra de estimação, com a adega de vinhos e, se calhasse, com o apartamento. Aliás, o apartamento mais cafona que o dinheiro do papai é capaz de decorar.
A série toda é montada de forma a encontrar explicações externas para o crime de Elize Matsunaga. Ela nunca tem culpa de nada. Ora são as más companhias, ora a família desestruturada, ora a abundância, ora a “cultura armamentista”, ora qualquer coisa. Os atos dela são sempre uma reação às escolhas alheias. Apropriadamente, a série aborda pela tangente os momentos-chaves em que o ser humano Elize exerceu, sim, seu livre-arbítrio, independentemente das circunstâncias. Como, por exemplo, na hora em que optou por matar e esquartejar o marido em vez de enfrentar um potencialmente sofrido processo de separação.
E, assim, a produção consegue fazer de Elize Matsunaga uma vítima do sistema prisional e uma sobrevivente de um relacionamento tóxico, quando não, pasmem!, uma heroína do feminismo. Mas isso nem é o pior. Porque a série termina com a assassina expondo seus planos perversos de manter contato com a filha, destruindo pela segunda vez a vida de uma pessoa inocente. Uma maldade que talvez não seja nada para quem teve a frieza de desmembrar o marido, mas que é de revirar o estômago do espectador decente.