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A Comissão de Segurança Pública da Câmara aprovou o convite para que Marcos Valério – é, aquele carequinha do Mensalão – fale aos deputados sobre a suposta, muito suposta, supostíssima relação entre o sempre impoluto Partido dos Trabalhadores e o PCC – facção criminosa para a qual não convém usar adjetivo irônico. Já volto ao tema, mas, até para provar meu ponto, deixe-me antes escrever algo que ninguém vai ouvir. Ou, no caso, ler.
(Almas em frangalhos formam outro grupo privilegiado que perdeu o lugar de fala. Tão ruidosos e onipresentes são os mimimis e os discursos de vitimismo identitário que o apreço pelo sofrimento verdadeiro hoje praticamente não existe. O mundo se lambuzou todo no mel do falso sofrimento, de tal modo que perdeu a capacidade de sentir a candura do sofrimento real. Curiosamente, acreditam na permanência da felicidade hedonista apenas os que acham que não precisam ouvir para saber o que vai ser dito).
Mas você quer saber mesmo de Marcos Valério. Eu sei. Sabemos todos. Tenho que admitir que se trata de uma figura mais interessante do que parece. Valério não é apenas alguém que, num passado que parece remoto, se envolveu em corrupção. Ele é um homem na teoria solto, mas na prática para sempre preso às concessões éticas que fez para se tornar... No que Marcos Valério se transformou? Por acaso hoje em dia tem a paz de alguém que pagou sua dívida com a sociedade? E mais uma pergunta, se me permite o presidente da Comissão: senhor Marcos Valério, valeu a pena?
(Antes continuar falando sobre o que você quer ler, contudo, me permita mais este parágrafo falando da tristeza que se engole em seco, que não tem forças para se transformar em poesia nem talento para virar música – quanto mais crônica! Um sofrimento que não encontra acolhida em ouvidos que assimilam apenas indignação e desejos de vingança. E, para que fique bastante claro, sobretudo àqueles que tendem a ler tudo em meio à visão turvada pelo cinismo, nesses parágrafos intercalados não estou me referindo ao sofrimento de Marcos Valério. Essa dor é de outro e ele não tem como processá-la por meio de mirabolantes esquemas com laranjas, doleiros, agências de publicidade e bancos).
Ao falar o que fala, quando fala e para quem fala, Marcos Valério está usando da mesma tática do opositor russo Alexei Navalny, que acreditava que a exposição midiática o manteria livre – e principalmente vivo. Não deu muito certo para o russo, mas espero que para Marcos Valério funcione. Até porque acredito, ou pelo menos tento acreditar, que há uma redenção no fim deste túnel. Marcos Valério, coitado, tem que se apegar a essa esperança que, no caso, é minha e não tem qualquer base racional. Qualquer outra, inclusive a de realmente se fazer ouvido e, a partir de suas palavras, ver surgir algo assemelhado à justiça, é improvável.
(Ah, quem me dera a tristeza pudesse, como o dinheiro sujo do Mensalão, ser lavada e sair do outro lado na forma da melancolia divina que, ao longo da história, deu origem a tantas obras-primas. É uma melancolia que idealizo, reconheço, mas me deixa, vai. Só por hoje. E, no mais, é improvável que você esteja lendo isso mesmo. Mimimi mimi mi mimimimi – deve ser assim que este eu-lírico soa aos seus olhos cansados de pesquisas eleitorais e ansiosos por uma palavra capaz de convencer todos os brasileiros de que a esquerda é o que é. Permita-me, porém, uma última reflexão: e se nos irmanássemos na tristeza mais do que na derrota? E, já que estou no embalo, outra: será que dessa tristeza tiraríamos algo diferente da revolta impotente?)
Na próxima quinta-feira (14), quem acompanhar o depoimento de Valério aos deputados (se é que ele vai mesmo) ouvirá o que quiser. E não ouvirá o que também quiser. Os substantivos, verbos, advérbios soarão como Verdade para uns e mentira para outros. Acreditarão em tudo os que já acreditam; mais desconfiados ainda ficarão os que já desconfiam de tudo. E, ao fim e ao cabo, todos sairão com aquela gostosa impressão de que sempre estiveram com a razão. Certezas serão cimentadas.
(Mas, se por um acaso você estiver preocupado, não fique. A tristeza sempre passa. Ou no mínimo se reconhece contaminada pelo mimimi, dá de ombros e, depois de um tempo, se permite sair pela avenida cantando uma marchinha qualquer. Há euforia fácil e barata em todas as esquinas e canais de streaming (na verdade a série “Euphoria” está disponível apenas na HBO Max, mas, ah, você entendeu). E, no mais, nunca se esqueça: tristeza nada mais é do que a incapacidade de reconhecer os bons desígnios de Deus).
Nos próximos dias, prevejo as expressões “bala de prata” e "a montanha pariu um rato" nos textos menos inspirados. Marcos Valério será herói numa hora, vilão na outra. Digno de crédito num dia, o rei da mentira noutro. O suprassumo da coragem aqui, o covarde supremo ali. Se bem que o cargo de covarde supremo já está ocupado por um hendecavirato (essa você vai ter que pesquisar). E a vida, arrisco dizer, seguirá praticamente inalterada, a não ser por esse grãozinho a mais da tristeza invisível que nos une e à qual reagimos com um desprezo que deveria estar reservado apenas aos mimimis da subliteratura cotidiana.