Fazia parte do rito familiar. Meus pais chegavam do trabalho, a gente jantava, cada um ia para o seu canto e, às 19h59m30s, nos reuníamos novamente diante da televisão para assistir ao Jornal Nacional. Primeiro num televisor com acabamento em fórmica, depois na primeira TV com controle remoto (um luxo!) e depois na cobiçadíssima TV de 29 polegadas, aquele trambolho. Hoje em dia apenas... Shhhhhh. Silêncio! Vai começar o Jornal Nacional.
“Atenção emissoras da Rede Globo, 5 segundos para o próximo programa”, anunciava aquela voz grave e, para mim, anônima. Era como se ele dissesse que havia chegado a hora de sermos todos sérios. Na minha infância, era como se um portal para as coisas adultas se abrisse diante de mim. Números que não entendia, pessoas que eu desconhecia, tragédias que ocorriam em países de que nunca tinha ouvido falar. E o meu pai e minha mãe lá, ambos compenetrados. Até hoje, por sinal.
Aí, pelo que me lembro, apareciam os apresentadores, se revezando no enunciado das principais notícias. Tinha dias em que a gente até levava um susto com esses primeiros segundos. Mas não é sobre isso que quero falar agora. Quero falar dos apresentadores que, para mim, eram homens míticos. Só muito tempo depois (há alguns segundos, para falar a verdade) fui pensar que eles eram personificações da verdade. Não! Eles eram instrumentos por meio dos quais a realidade chegava até nós. Veja agora no Jornal Nacional.
A esse imperativo (e quem haveria de desobedecer a uma ordem de Cid Moreira ou Sergio Chapelin?) se seguia um breve segmento publicitário. Até que se ouvia ele, o famoso jingle do Jornal Nacional. E dá-lhe notícias e eu, na doce ignorância da infância, me perguntando como alguém conseguia decorar tudo aquilo. Como alguém não tinha medo de errar? Um parente certa vez ousou sugerir que os apresentadores liam as notícias que passavam num aparelho colocado em frente à câmera. Hahahaha. Até parece!
Estou lembrando aqui que, entre os blocos do telejornal, aparecia uma animação qualquer da logomarca JN, acompanhada pelo barulho de uma máquina de escrever nervosa. Estou lembrando também que acho que nunca vi os apresentadores darem uma risadinha ou se emocionarem. Eles eram sérios e, mais importante, eram sóbrios. Estavam ali para informar, não para despertar sentimentos no espectador. Essa constatação me leva a outra, de implicações seriíssimas.
Despudoradamente saudosista
Nunca vi meus pais duvidarem do Jornal Nacional. Tampouco eu – e olha que fui uma criança precoce e um adolescente chato (pleonasmo!) nessa coisa de duvidar. Mas em relação ao Jornal Nacional, nunca. Nem passava pela minha cabeça que pudesse haver quaisquer interesses escusos na ordem ou no teor das notícias. No Jornal Nacional a gente simplesmente acreditava porque... Porque não havia motivo para duvidar daqueles senhores sérios e sóbrios que tinham o trabalho de decorar tantas notícias apenas para nos manter informados.
Não sei como é hoje, mas naquela época a última parte do telejornal era reservada às notícias leves. Era o momento das efemérides e curiosidades. Ou então a notícia era a da morte de algum artista, mas mesmo nesses casos a gente não sofria. A gente se informava. Aliás, me permita um comentário marginal aqui: dificilmente o obituário era de alguém detestável. Não se odiava os artistas. As pessoas tinham divergências estéticas ou não eram fãs. Mas rejeitar o combo pessoa + obra? Se havia esse tipo de coisa, não guardei na memória.
Esse ritual se prolongou por muitos anos. Pelo Jornal Nacional acompanhei a morte do Tancredo, os muitos planos econômicos da Era Sarney, a queda do Muro de Berlim, o confisco da poupança, o Plano Real, as muitas vitórias da Seleção Brasileira – e a morte de Paulo Francis, que pediu para entrar neste texto e não sou nem louco de negar. Foi um momento marcante para mim.
E se você achou que eu encerraria o texto com “hoje em dia tudo é diferente”, sinto muito. Este não é meu propósito aqui. Esta é uma crônica despudoradamente saudosista. Nostálgica do Jornal Nacional, mas não só. Também do ritual familiar, da sensação de normalidade causada pela inconfundível musiquinha e principalmente da relação de confiança quase paternal entre nós, espectadores comuns, e aqueles que nos relatavam os acontecimentos mais importantes do Brasil e do mundo. Boa noite.
(Inspirado por este tuíte do amigo Leandro Narloch).
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