Todos os dias, por volta das cinco da tarde, ele se põe diante da televisão. Um pouco antes, ele prepara a pipoca, que engole aos poucos, bebericando água de coco. Quando finalmente o espetáculo dos gráficos começa, ele olha em volta, para o apartamento vazio, e pede que seus amigos imaginários façam silêncio. Vai começar a coletiva do excelentíssimo ministro da Saúde, dr. Luiz Henrique Mandetta.
Ele se senta de pernas cruzadas. Em posição de índio, como a tia Vanilde do primário nos ensinou. Com um bloquinho na mão, ele anota os números do coronavírus no Brasil. Tantos infectados, outros tantos infelizmente perdidos para a doença. Ele pega o iPhone 11 e faz os cálculos mais óbvios. A taxa de mortalidade. A função entre infectados e tempo. Com base nisso, ele faz projeções mentais. E se desespera. É a Gripe Espanhola! É a Peste Negra!
Contra mim, que me recuso a ceder ao pânico, ele está munido de vários carimbos. Do Conselho Federal de Medicina. De Stanford! Da nota 10 na aula de epidemiologia. Eu, pobre-diabo com um inútil diploma de jornalismo, só tenho umas frases poéticas para usar. O “ser ou não ser” de Hamlet cabe aqui. Assim como o “não há nada de novo sob o Sol” do Eclesiastes. Se eu fosse um pouco mais arrogante, poderia até usar uma pitada de Guénon nesse coquetel de cientificismo e ateísmo todo.
Mas me calo. Porque ele tem diante de si não só o ministro da Saúde, mas também os números e os alardes e a comunhão macabra do medo. Ou, como dizem lá no interior, ele está por cima da carne seca. Se ataco com um Livro de Jó, ele contra-ataca com um gráfico destes que não dizem nada, mas expressam tudo. Se tento investir com A Peste, de Camus, ele logo vem com um documento burocrático assinado por um Zé Qualquer da OMS. E o mar?, eu pergunto. Ele celebra um prefeitinho qualquer que ousou mandar as ondas se calarem.
E assim vamos nos desentendendo. Ele cheio de si, com todas as respostas para todos os problemas do mundo – sem esquecer aquela chancela lá de Stanford. Fique em casa, grita ele. Lave as mãos por quinze minutos, no mínimo. Não se esqueça de lavar também as compras do mercado. Aliás, não faça compras. Não coma. Respire só quando for muito necessário.
Todos os dias, quando termina a coletiva do Mandetta, com seus xis mortos e ípsilon infectados, ele me liga. Deixo o telefone tocar e, quando me canso, atendo para dizer que não posso falar agora, que estou ocupado lendo sobre a vacina que está sendo desenvolvida por Israel ou mais um caso de sucesso da tal hidrocloroquina, que estou escrevendo sobre como a pandemia virou peste ou como o coronavírus desperta o tiranete em cada um de nós. Mas ele insiste.
E, diante do meu silêncio, que é um silêncio mais resignado do que combativo, ele me xinga de irresponsável. Canalha. Obscurantista. Terraplanista. A tudo isso ouço quieto. No silêncio, me pergunto se ele, que passa a quarentena aproveitando o ócio inesperado esvaziando a adega, trocaria a coletiva do ministro da Saúde por um improviso de Ella Fitzgerald. Por um quadro de Goya. Por um poeminha só de Manuel Bandeira – logo ele, que viveu com os pulmões comprometidos durante toda uma vida que poderia ter sido – e foi.
Claro que não. Porque a dose diária de panicodemia satisfaz uma necessidade muito primitiva dele e de tantos outros, contra a qual só o tacape da civilização tem efeito: a de se sentir capaz de usar o intelecto para desafiar vulcões, terremotos e furacões e toda o caos que foge à nossa compreensão. Uma necessidade que, no fundo, é a mesma que Adão sentiu ao comer do fruto proibido: a de se igualar a Deus.
Desligo o telefone. Apesar da chuva e do friozinho de outono, Sinatra canta que “weather-wise is such a lovely day”. Victor Frankl, no recém-lançado Yes to Life, emenda uma ode à vida. Na tela da TV (da minha imaginação, que seja!), Big Lebowski vence uma partida de boliche contra os niilistas. E a vida pulula, fervilha logo ali, do outro lado dessa travessia.
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